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Wednesday, July 09, 2014

Quarta Epístola

Não muito longe dali - Katowice, Vitor Vicente, Julho de 2014

Dear K.,

Volto a dirigir-me a ti daqui, do alto deste décimo andar. Por cá estarei por mais duas semanas, até que acabe o período de alojamento a cargo da empresa.
Não penses que não comecei a tomar as devidas providências. Deixei de ser esse rapaz das Ramblas, que mudava mais de casa do que camisa e pedia pão para a boca com a lata de quem pede boleia. (Agora que me lembro da história central da presente epístola, lembro-me que em Barcelona fui personagem de idêntico episódio).
Antes de o desvendar, quero adiantar que não penso viver debaixo da ponte. Primeiro por - até onde eu sei esta cidade - não existirem por cá pontes ou coisas parecidas. Segundo por - como tenho dito a alguns amigos - preferir vir a morar num bom bairro de Katowice do que debaixo de uma das pontes do Wisla, por muito que pudesse considerar isso como morar em Cracóvia.
Públicas são então as minhas intenções. Duas bgiginas têm-me ajudado na procura do poiso. Uma delas viu um anúncio de um apartamento para alugar e a outra acompanhou-me na visita para efeitos (entre outros, como vamos ver adiante) de tradução - que é um efeito bem caro a emigrantes em terras do Leste. Outro é o próprio ato de marcar a visita. Ainda ao telefone, a senhoria, assim que soube que o possível inquilino não falava uma palavra (força de expressão, pois sei umas quantas) de Polaco, perguntou várias vezes: "É negro? Mas é ou não negro? Português, mas negro?".
Ainda que a coisa parecesse estar preta para os meus lados - literalmente, pois estou mais tisnado desde que estou na Polónia , devidamente escoltado pela bgigina, lá fui ver o apartamento. Mais do que ver o dito, foi ver a velha. Tal como antevíamos, o apartamento em si era bestial, meio artístico, meio clássico. Tal como a velha, com a diferença de que nela se via o declive que tinha sido sua vida, que havia descambado em vícios como o vodka e os anti-depressivos. O apartamento em si, sim. Só que o apartamento com a senhoria não, nem pensar.
Quanto aqui ao negro, afinal era semi-negro. O suficiente para, aliado ao fato de não ter namorada, me cravar o número do telemóvel e, quando estávamos quase a sair de casa, me convidar a ficar a fim de experimentarmos (plural) o conforto da cama. E assim, dado o clic no clit, se desfaz o racismo em cacos. Ou será que a senhoria tinha tara por negros e/ou escurinhos?
Não sei, nem quero saber. Estava perplexo. Primeiro, por ter perdido uma casa tão boa. Segundo, por me parecer que esta senhora (a quem já não chamo de senhoria, por a ver mais como uma pessoa do que outra cosia qualquer) tenha sido, alguns bons anos atrás, uma mulher bonita e até interessante e estar agora afogada no vodka. Como a respetiva de Barcelona, a típica artista, rica e despistada, com quem dividi casa durante um mês. O mesmo triste declive. Só mudava isto: em vez de vodka, vinho. 

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