Translate

Saturday, November 22, 2014

Trigésima Oitava Epístola

Estação central - Katowice, Vitor Vicente, Novembro de 2014


Dear K.,

Chegam-me os dedos de uma mão para contar o número de meses em que me encontro aninhado no teu seio. Somo todos os dedos da outra mão e obtenho o tempo exato em que sou parte da tua paisagem.
São então cinco meses e cinco dias. Que, neste momento, à falta de melhor metáfora, me parecem cinco dias e cinco noites. Assim dito, parece uma semana de dias úteis. Mas eu antes diria que se assemelha, dado o permanente pasmo e à sequela de aborrecimentos e  de surpresas, ao tempo que dura um ciclo de cinema.
Em suma, trata-se do período suficiente para termos desenvolvido aquele tipo de paixão em que não importa que continuemos a dormir juntos ou que, amanhã, ao acordar, digamos adeus, até uma pendente próxima. Essa é - ensinamento que colhi contigo - a máxima de toda a sábia errância: não ser obrigado a ficar, nem ter porque partir e sempre saber que a pouca felicidade que nos é possível está sempre coberta por um qualquer teto de estrelas. 
Quem diz errância, diz nomadismo de lençóis. Diz qualquer prática de desprendimento que transforma qualquer cidade ou qualquer cama num qualquer cais. Num desses lugares que nos dão a liberdade de, uma vez lá termos atracado, nos agarrem por uma âncora que nos permite lá voltar e simultaneamente de lá sair.   
De ti, K, que não és banhada pelo mar, que tens um ribeiro que nem chega a ser primo de um rio, que consegues ser seca sem que haja um deserto por perto e por aqui quase não soprar o vento, de ti o que eu levarei é precisamente aquela âncora. Que será esse o teu eterno souvenir. Com o secreto significado de que, como por aqui não há turistas, os únicos que podem ser tidos por tais são os que por aqui encontraram uma espécie de emprego para poder argumentar com uma desculpa esfarrapada a razão de aqui ter vindo existir. 

Thursday, November 13, 2014

Trigésima Sétima Epístola

A vida noturna de Guangzhou, Vitor Vicente, Setembro de 2014


Dear S.,

A China foi o meu vigésimo oitavo país e, na época, eu tinha precisamente vinte e oito anos. De Guangzhou guardo sobretudo as vésperas da chegada e da partida. Nunca antes me foi tão difícil passar uma fronteira como me foi sair de Macau e entrar na chamada "Mainland China". Como se a China ainda estivesse muralhada. Quanto à noite antes da partida, guardo os momentos que começaram com a minha dificuldade em contar as moedas para pagar una Tsing Tao e como as tuas mãos me ajudaram nessa e nas duas seguintes cervejas. Assim como dos três táxis que, mais tarde, dividimos. Primeiro, desse bar para outro, onde estavam montes de latinos e de árabes e onde toda a gente falava comigo em árabe. Depois, desse bar para o meu hotel. E, já na manhã seguinte, como te dei o dinheiro para o táxi, de certa maneira também nesse, que te levou do meu para o teu hotel.
Entretanto, países já são cinquenta e um e  aqui em Katowize cheguei às trinta e uma parceiras. Nada a assinalar, nem a celebrar. Senão mais um casamento, agora de idade e de parceiras.
À falta de casamento propriamente dito, entretenho-me com estes matrimónios à margem da lei. Com estas tabuadas de pervertido, com estas aritméticas de amores de marinheiro e passagens breves por países que me fogem dos pés. Com estas matemáticas e estatísticas que não são calculáveis no Excel, nem dignas de um Power Point que se preze.
Do que eu gosto mesmo é de contar dinheiro. Seja a sós e na minha mesa de cabeceira. Seja com a ajuda de tuas mãos num balcão de um bar.

Wednesday, November 12, 2014

Trigésima Sexta Epístola

Vestígios da II Guerra Mundial em Varsóvia, Vitor Vicente, Outubro de 2014

Dear A.,

És o meu melhor medidor de mood (digo mood intencionalmente, internacionalmente, não por me faltar uma palavra em Português, mas por o teu espaço ser uma terra de ninguém e como tal o Inglês é o idioma que te foi instituído).
Por mais que mood possa parecer prosaico, teu é o mérito de ser através de ti que meço o que penso, o que sonho e o que faço. Tanto se me dá se chegas até mim no aeroporto de Varsóvia ou através doutro qualquer aeroporto. És o único lugar no mundo onde o tempo é o mesmo em todas as partes.
És onde testo a minha leveza e o meu pesar. O quanto me custa levantar-me da cama ou permanecer calado e/ou quieto. 
O vento agora, como já deves ter adivinhado, trouxe-me à tua versão de Varsóvia. Trata-se de um vento que não areja, nem veda os olhos com areia. Muito menos mata a sede. Antes onde me exibes a mais violenta das verdades: que todo o tempo tem um termo, menos o teu.

Tuesday, November 11, 2014

Trigésima Quinta Epístola

Velho vagão em Auschwitz, Vitor Vicente, Agosto de 2014 

Dear S.,

Saí do meu compartimento e pus-me a percorrer o comboio, carruagem atrás de carruagem, com o pretexto de encontrar um bar ou um restaurante, um qualquer lugar com comida - e pensando que a necessidade humana de comer não se nega a ninguém, a não ser em Auschwitz ou contextos atrozes afins.
Chegado à primeira classe, fui intercetado. Como não falávamos o mesmo idioma, levei a mão à boca naquele gesto de quem quer pão, uma côdea, qualquer coisa para a boca. "Não há nada para ninguém", foi como poderia traduzir em bom Português a resposta daquele que me intercetou.
Obsceno. De resto, estas carruagens, estes compartimentos, todo este comboio, só me lembram um par de obscenidades. Os campos de concentração e as películas pornográficas.
São assim os ventos do Leste. Ventos que - pelo menos é o que dizem os entendidos sobre a Silésia - por aqui são quase inexistentes. Que pouco ou nada arejam ou apagam. Que deixam as feridas por sarar, que deixam o sangue secar e ficar para sempre.
À falta de outro tecnológico anti-tédio, escrevo-te esta epístola. Prefiro afrontar os passageiros com estes papéis do que sair porta fora do compartimento e escutar o chiar do comboio e que tanto se me parece o prolongamento do choro das vítimas de outrora. 
Tenho que acordar e entender que afinal isto já não é o Transiberiano. É seu sobrinho, se tanto. E se o é, como sempre acontece às novas gerações, não sai aos seus e degenera.
Mas isto já sou eu a fazer o exercício que nós costumávamos fazer com os nossos colegas. Com a diferença de que os nossos colegas eram-nos presença diária e estas cobaias são-me meramente passageiros de um comboio que veio de Varsóvia e de onde eu não venho e que vai até Viena e para onde eu não vou. Aparentemente, desta vez, eu vou ficar pelo caminho, em Katowice. Quando, na verdade, para onde eu vou, sempre que apanho um comboio desta envergadura, é para Vladivostok. 

Monday, November 10, 2014

Trigésima Quarta Epístola

Rio Coina com fábricas ao fundo, Vitor Vicente, Outubro de 2014

Dear P.,


Às vezes, tenho a impressão de que entrei dentro de ti há muito tempo - há mais tempo do que, legalmente falando, me encontro entre as tuas fronteiras.
Não é uma impressão nova ou de agora. Apenas acabou por ser acordada pela simples garrafa de água da passageira que vai sentada à minha frente. 
Como disse, é uma garrafa de água. Simples, sem gás, sem nada, e de nascente polaca. Que eu costumo ver pelos supermercados de Katowice, assim como era presença habitual nas lojas polacas da Irlanda e -também  posso imaginar - que esteja espalhada pelos quatro cantos de Chicago.
Desta água eu bebi várias vezes em Dublin. Seja em casa dos meus amigos polacos, seja no ginásio. Algo que, hoje, eu vejo como que já estava adivinhado que o meu caminho por ti seria traçado. Por já, atempadamente, por ti ter sido atravessado.
No entanto, tenho que assinalar que jamais sonhei com o tanto que a Silésia se parece à Margem Sul do Tejo. Ambas as regiões foram bastiões do Comunismo e, como o dito regime se destaca pela falta de originalidade, acaba por ser natural que tanto se pareçam. Tanto assim que os comunistas têm o mérito de conseguir irmanar mundos tão distintos como Cuba e a Coreia do Norte.
Talvez eu e tu comunguemos um comunismo recalcado. Que simultaneamente me segura na Silésia e me aponta a porta de saída. Que me faz sentir o conforto de casa e ao mesmo tempo me sufoca. Quem é que te disse que pareceres-te tanto a minha casa seria meio caminho para permanecer entre as tuas quatro paredes? Para um errante a porta de qualquer país está sempre aberta. Seja para entrar, seja para sair.  

Sunday, November 09, 2014

Trigésima Terceira Epístola

Antigas fábricas da Cuf - Barreiro, Vitor Vicente, Outubro de 2014 


Dear B.,

Quiseram os desconhecidos desígnios de D-us que fosse convocado um plenário no preciso momento em que eu me lembrei de atravessar o Tejo.
Não quis pagar táxi e optei por ficar em terra. Não numa terra qualquer, senão em ti, minha velha terra.  De onde tão velho se tornou o meu conhecimento que, com os anos, se me tornaste minha velha terra estrangeira.
Não sem surpresa, pois já na Silésia o suspeitara, o mais que deambulava, mais me lembrava das terras por onde agora o meu quotidiano se assentara.
A resistente presença da réstia das fábricas de outrora, o polígono industrial que, à falta de catedral, comanda a cidadania, uma certa cultura inconsequente com os seus movimentos de cultura faz-de-conta mascarados de contra-cultura, toda essa doce e decadente paisagem fez-me pensar que nunca como antes, que nunca como aqui agora, a Polónia e Portugal puderam ser tão parecidos. Seja no Barreiro ou em Palmela, seja em Katowice ou em Chórzow.
Tal era o meu pasmo que, ao fim de cinco dias na margem sul do Tejo, persistia-me o espanto por ouvir alguém falar Português por estas bandas. Como se ao fim de cinco dias eu continuasse imerso num sonho Silesiano.
Lisboa, do lado de cá do Tejo, parecia-me tão longe e por isso tão tentadora. Como Cracóvia me parece de Katowice e por isso tantas vezes recebo apelos de partir e de ir embora. 

Saturday, November 08, 2014

Trigésima Segunda Epístola

Passeio público de Kazmierz - Cracóvia, Vitor Vicente, Setembro de 2014


Dear G-d,

Não preciso de pedir o teu perdão. Assim como não preciso que me imponhas a punição. Poder, até posso pedir. Tal sempre irá ou deixará de acontecer de acordo com a tua vontade.
Porque tens o pleno poder sobre a palavra e sobre o plano. Porque tens o desprendimento de tão depressa poderes perdoar aqueles que porventura virás a punir, e vice-versa. Ainda que a todos, hoje, ontem e amanhã, igualmente ames. 
És, acima de tudo, amor. Um amor atravessado por um imenso abraço e pelo cano de uma espingarda. És, acima de tudo, um pronto-a-perdoar e um pronto-a-punir.
Não nos desvelas a sabedoria dos dias em dogmas, senão nos obrigas a abrir os olhos e a tomar notas. De vez em quando, trocas-nos as voltas para que saibamos que a única direção possível é a do sagrado. 
Trata-se de este ensinamento: de nos sabermos e assumirmos livres enquanto estamos supervisionados ao teu consentimento. Perdoa-me então, se aqui em baixo, tenho sido reles e rasteiro, tanto contigo como com aqueles que criaste. Perdoa-me se, sob qualquer cegueira, semeei o sinistro ou se em silêncio estive quando não devia ter estado calado ou se fui surdo ao uivo com que se expressa o sopro do mundo. 
Peço-te, continuarei a pedir-te, a oportunidade de ser uma dessas centelhas de luz, uma dessas centelhas com que iluminamos os passos entre o aqui, o agora e o porvir. Peço-te somente isso, além do teu poderoso perdão por todas as falhas que possam tomar parte no meu passado.