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Wednesday, December 31, 2014

Quadragésima Oitava Epístola

 Terminal central de Ostrava, Vitor Vicente, Dezembro de 2014


Dear K.,

Existe um determinado tipo de pessoas com quem, ocasionalmente e sempre num certo contexto, nos cruzamos e de quem sabemos que, um dia, passarão a ser pertença do passado e da irrisória memória futura. São pessoas que sobressaem por serem sui generis, seja pelo trato ou por algum tique e trejeito com o seu quê de engraçado.
No teu caso, K., encontrei umas pessoas que, desde o dia em que pela primeira vez me vi obrigado a lidar com ela até hoje, dia em que nos despdimos, se destacou por um trato tremendamente tétrico: o de saber mais que suficiente de Inglês para poder comunicar com os clientes e simplesmente não querer, apenas para nos fazer passar por palhaços.
Acresce que esta criatura trabalha num cyber em pleno terminal de comboios e de autocarros. Tem (segundo a tabuleta) o estabelecimento aberto 24 horas por dia e 7 dias por semana - o que é quase tão incompreensível quanto o esforço empreendido em ser rude, dado que - pelo menos que eu saiba - não existe concorrência no centro da cidade.
Ciente de todo este trato e de que podria sacar as fotocópias num guichet junto das Universidades, dirigi-me a essa rua. O guichet parecia fechado. A fim de me assegurar, através do meu parco polaco, tentei ler o horário de abertura durante a quadra. Parecia-me que estava aberto. Determinado, rodei a maçaneta e abriu-se a porta. Nunca antes este guichet me pareceu tanto a uma obra de arte. 
Feitas as fotocópias, tomei o caminho do cyber como quem toma o caminho de uma caverna habitada por um monstro. Era imperativo imprimir uns papéis e a impressora de que me costumo socorrer, ontem, tinha ficado sem tinta. 
Quanto ao tal tipo, continuava sem tirar nem pôr o mesmo: intratável. Eu comportei-me com a finura do costume. Até que, na hora da saída e que, entre os meus dentes, foi a hora da despedida, em vez de fechar a porta como sempre, ou fechar a porta com força, deixei-a delicadamente aberta. Para que lhe afague um frio, ou pelo menos um vento que lhe diga que, apesar de ter o estabelecimento entre um vai-vem de gente, nem ele, nem ninguém quando e onde pode vir a precisar de quem.

Tuesday, December 30, 2014

Quadragésima Sétima Epístola

Transilesiano - Katowice, Vitor Vicente, Dezembro de 2014

Dear K.,

Aos finais sempre estão associados sentimentos de frustrações ou afins, por aquilo que ficou por fazer.
Não vou aqui descrever-te toda a minha vida. Centrar-me-ei na Silésia onde tanto ficou por ver. Às tuas terras vizinhas só fui três vezes, sendo que dessas três só me deu para ver duas delas: Chórzow e Sosnowiec. Sendo ainda que dessas duas vezes pouco mais fiz que cortar o cabelo e comer um hamburguer.
Dessas três vezes, duas fui e voltei de carro. (Como de carro sempre fui ou voltei do teu aeroporto). Quanto à outra, fui de tram. No que eu chamo de Transilesiano e onde não só viajo no espaço, mas também no tempo.
De resto, poucas foram as vezes que andei de tram. Vi-o e ouvi-o passar como antes o via no Youtube. Com a diferença de que aqui pude desfrutar de ouvi-lo mas não vê-lo passar, do alto do décimo andar onde morei durante o primeiro mês.
Nos cinco meses seguintes morei num apartamento a que, ainda que no primeiro andar, só o silêncio chegava. Perto desta casa, há um restaurante Chinês que sempre quis conhecer. Nem tanto para comer, mas para saber como aqui os chineses ajustam a sua culinária à gastronomia local.
Nunca fui. Adiei para um amanhã que se auto-adia e até hoje está para ser parte da agenda. Tu devias saber que eu mais depressa compro um bilhete para a China do que vou comer ao restaurante Chinês ao virar da esquina.

Monday, December 29, 2014

Quadragésima Sexta Epístola

Silesia City Center - Katowice, Vitor Vicente, Dezembro de 2014


Dear K.,

Acaba de começar a última semana do ano. Acaba de começar a nossa última semana juntos.
Quero que uma coisa fique claro: que poderíamos ter ficado juntos por muito mais tempo. Porque eu não me vou embora de ti. Vou-me embora por aqui não ter um sustento senão um que só me serve enquanto sustento.
Sabes, eu já não estou naquela faixa etária em que encaixo em qualquer ofício. Não, não vou mais viver ali, à custa do ar e do que já veremos o quê, só porque é ali que quero viver.
O meu contexto ambulante transformou-se. É agora outro. Sobrepõe-se o ofício às cidades. Sobrepõe-se, sublinho, pois ambos terão o seu peso e respetiva importância. Ainda que me pagassem biliões de petrodólares, não me vejo nos endinheirados Emirados ou no Dubai. Nem a ir para Amsterdão com outro ganha-pão que não o de catar pontas de cigarros nos coffee shops e nos prostíbulos.
O bom de uma cidade como Cracóvia é que continuaremos por perto e em contato. Será sempre uma espécie de recomeço, mas nunca um regresso à estaca zero - o que, sinceramente, após apenas seis meses de Polónia, não me apetece.
Poderíamos ter ficado juntos por mais tempo, mas demos por terminado e, pronto, não ficámos. Entre nós o que ficou foi essa frustração pelo que ficou pendente. Como é comum entre casais que estavam convencidos de que teriam um futuro. Como é próprio de todos nós na hora sem-retorno da morte.

Sunday, December 28, 2014

Quadragésima Quinta Epístola

Caminhos brancos - Katowice, Vitor Vicente, Dezembro de 2014


Dear K.,

Entre ti e Cracóvia vai quase a mesma distância que separa as duas cidades onde morei na Catalunya: Vilanova i la Geltru e Barcelona (que inclui também L´Hospitatel de Llobregat, por se tratar da mesma área metropolitana.). Apesar da coincidência, não sinto nada de semelhante nesta mudança. Jamais vivi Vilanova como te vivi a ti. Com tanta entrega e, ao mesmo tempo, ocasionalmente, a espreitar pela oportunidade de partir para a grande cidade.
Posto nestas palavras, pode dar a impressão de que és o subúrbio de Cracóvia. Erro crasso, de quem necessita de lições de Geografia - o que, hoje em dia, significa navegar no Google Maps. Para que Português perceba, façamos a seguinte comparação: és tão subúrbio de Cracóvia, como Setúbal o (não) é de Lisboa. (Se esta comparação não vos convence, já sabem onde ir - Google Maps.).
No entanto, eu sinto que estou de volta ao meu velho Barreiro (também pela cem-vezes aqui repetida parecença da Silésia com a Margem Sul to Tejo) e que, desta vez, logrei encontrar o caminho para me mudar para a tentadora Lisboa. 
Trata-se então de um salto. De alcançar uma espécie de sonhado céu onde sempre se pôde ir e sempre esteve proibido permanecer. 
Para terminar os paralelismos, o contra- exemplo. Em Dublin, tirando as duas primeiras semanas que passei numa casa donde sabia que não iria ficar mais do que essas mesmas duas semanas, morei somente em dois bairros. Ainda por cima, vizinhos. Tão vizinhos que, a haverem códigos postais na Irlanda, seriam somente um. 

Saturday, December 27, 2014

Quadragésima Quarta Epístola

Igreja de Mariacka - Katowice, Vitor Vicente, Dezembro de 2014


Dear K.,

E na nossa última sexta-feira juntos, começou a nevar. Nada de novo, nem de surpreendente, tendo em conta o teu historial de temperaturas. A não ser que tardou mais do que é costume. Que o calendário teve que esperar pelo primeiro dos nossos dias que não se iriam repetir nunca mais.
No dia em que apanhei o autocarro para Cracóvia, ou seja na véspera da entrevista para empresa que de ti me leva, pela primeira vez em seis meses, ouvi Hebraico por aqui e em viva voz. Sabia que era um sinal. Cujo significado era que algo estava para cair do céu e que eu tinha de me comportar de acordo com a dádiva, para que esta me caísse no colo. Demorou oito dias a cair. Tantas quantas as noites do Hannukah que começara precisamente nessa noite em que ouvi Hebraico por aqui pela primeira vez e a viva voz. 
Passemos a outras contas curiosas. No caso, o ajuste das ditas com a empresa que me trouxe até ti. Cabe-me trabalhar até ao último dia do ano, inclusive. Ironia a que ainda acresce o fato de ter o turno da tarde. O que, muito antes de tudo isto, eu havia pedido. Num gesto de bondade que abriu muito mais a boca das bgiginas do que o dia em que anunciei que estava de saída. 
Não é a primeira vez que o último dia numa empresa corresponde a uma data digna de destaque. Deixei de ser staff do aeroporto de Barcelona na mesma noite (eu e os turnos fora de horas!) em que, três anos antes, tinha chegado a essa cidade. 
Cidade que, na hora me despedir e mudar para Dublin, me reteve em terra durante uns dias. A culpa, na época, foi atribuído a um certo vulcão na Islândia e que eu fiz questão de olhar nos olhos, não muito mais de um ano após este acontecimento.
A propósito de aviões e viagens, ainda quando morava em Dublin e da primeira vez que fui fisicamente a Israel, comecei aí o processo de entrevistas que me levaria a encontrar o emprego que mais me mudou a carreira e o conceito dos chamados tempos livres.
A isto chamo eu andanças e caminhos cruzados, causalidades cósmicas e labores abençoados. 

Friday, December 26, 2014

Quadragésima Terceira Epístola

Spodek - Katowice, Dezembro de 2014, Vitor Vicente


Dear K.,

Continuemos no mesmo capítulo. Não saiamos dos sonhos. 
Ao despedir-me de ti, enquanto me despeço de ti - ou melhor, enquanto revejo o modo como me expresso enquanto me despeço - face à ausência de referências a sítios ou pontos citadinos e concretos, assalta-me a sensação que nada mais vivo do que numa nuvem de sonho e que mais não vim aqui do que sonambular.
São poucas a menções aos teus lugares-chave. Como se fosses uma cidade sem sítios. Ou será que os teus detractores tinham razão, quando me diziam que não tens nada para ver, nem ofereces coisas para fazer? 
Não vou começar uma discussão, apenas dizer que discordo deles. Assente nisso, afirmo segunda vez a minha admiração por não haver uma palavra sobre o Spodek, nem rasto do Rynek. Dirão agora outros detractores - no caso, os meus - que assim é por nunca ter posto o pé no Spodek. Discordo também deles. O Spodek é uma sala de espetáculos em que o principal espetáculo é o edifício em si, visto de fora e à noite. 
Não há então outro porquê de não haver referências senão o meu lado lunar, o ser sonâmbulo à luz do dia e ter tendências autistas. Nem mesmo o fato de o Rynek ser pouco digno do mesmo nome, se comparado com outras cidades polacas, serve para me esconder atrás de desculpas esfarrapadas.
No final, o que fica é que só a esses sítios me refiro quando me recordo de que nunca os referi. Que não fica outro vestígio senão um certo rastilho. De quem quer continuar a levar a sua vida como uma onírica odisseia. 

Thursday, December 25, 2014

Quedragésima Segunda Epístola

Parque dos Três Lagos - Katowice, Vitor Vicente, Dezembro de 2014


Dear K.,


Eu nunca te disse isto. Na verdade, não o contei a quase ninguém. Trata-se até de um quase-segredo. Isto de que, desde que cá cheguei, tenho escrito uma sequência de sonetos a que chamo de Sonetos Silesianos.
Foram sobretudo escritos no perímetro do teu corpo, assim como no da terra para onde partirei dentro de uma semana. Por eu pensar que tudo era pertença da Silésia. Ser Silésia até o geograficamente é. Ou, pelo menos, poderia ser. Pois já o foi. Pois as tuas e as fronteiras da vizinhança, ao contrário das do meu pasmaceiro país, jamais foram estáveis.
Ciente disso, continuei a escrever sonetos silesianos a partir de Cracóvia. Como cheguei a pensar fazê-lo, algum dia, de Wroclaw. Porque à poesia está permitido mentir, mas aos postais não. 
Okay, agora sei que Silésia não significas somente tu, mas todas as cidades que em ti desaguam. És como o rio, cujo caudal é conduzido por todas às cidades que são tuas afluentes e que te tornam tão influente e, por isso, tão importante. Graças a essa conexão de cidades-canais, podes-te equiparar a uma grande cidade onde os poetas se podem perder e içar-se de volta à vida através do exorcismo do verso. 
É essa a essência de soneto - ser capaz de encontrar uma certa cadência de passos em cada palavra para provar que a perfeição é uma ordem tão válida quanto aquela em que o caos está simplesmente oculto. Ou então tudo isso não passa uma invenção da minha cabeça e só na minha cabeça se passou o acontecimento de eu ter estado, durante seis meses, na Silésia.
Ah a insuperável sensação de saber que se está a saborear o que só se supunha ser alcançável através dos sonhos, ah soberba sonâmbula!

Wednesday, December 24, 2014

Quadragésima Primeira Epístola

Árvore de Natal com Spodek ao fundo - Katowice, Vitor Vicente, Dezembro de 2014

Dear K.,


Quer se queira, quer não, o nosso mundo é cristão. O calendário da civilização, o relógio do quotidiano rege-se pela data que atribuíram àquele que passaram a chamar de Jesus e também de profeta.
Quer se queira, quer não, o nosso tempo é capitalista. Por mais que o comunismo tenha estado impregnado em cidades como tu, na hora do Natal acendem-se luzes e ouvem-se vozes que durante todo o ano estão na sombra ou em silêncio.
No teu caso, ao contrário do comum, a igreja católica é sinal de resistência ao regime. Talvez por isso ainda se continuem a ver tantos crucifixos, tanto nas casas como nas instituições públicas da Polónia.
Eu retirei o meu da casa onde vivi durante a segunda metade do ano que termina. Assim como tenciono fazer o mesmo na casa em Cracóvia, para onde me mudarei assim que o novo ano começar. Não se trata de um protesto, senão duma questão estética. Removo os crucifixos da parede, como quem remove quadros. 
Passemos então ao parágrafo do protesto. Contra o fato de o mundo me ter dito para esconder a bugiganga judaica no dia em que o senhorio veio cá ver como eu tenho tratado a casa. Porque nunca se sabe se as pessoas aceitam ou não o que as outras pessoas simplesmente são.
Face à ameaça, ultrapasso-a com a anual graça de ver a espécie, incluído os anti-semitas, celebrarem o dito nascimento de um menino judeu. Onde estão os tipos dos boicotes? Calados que nem ratos, a lamber os pratos? Enrabai-os com rabanadas.  

Tuesday, December 23, 2014

Quadragésima Epístola

Galeria Katowicka, Vitor Vicente, Dezembro de 2015


Dear K.,

Não sei se aprendemos mais em viagem, se a viver enquanto expatriados. Estou, contudo, certo que a combinar as duas condições, a de viajante e a de expatriado, se aprende muito, muitíssimo. Como se todo um mundo pudesse caber numa só cabeça.
Também estou certo que não aceitarei mais que nada nem ninguém diga mal de ti na minha frente. Se o fazem nas minhas costas, é uma questão de tempo para fazer o que farei com quem o faça à minha frente: lutar. Literalmente, corpo a corpo.
Não como quem protege a amante, mas defende algo que lhe é fraterno. Por me ser instintivo exigir de ti o que exijo a mim e aos meus. Por te execrar quando não o logras. Por te detestar quando me mostras os meus e os defeitos dos meus.
Deve ser por isso que me é difícil continuar a dormir contigo. Por tanto a Silésia se parecer à Margem Sul do Tejo e eu sofrer do nómada complexo de não conseguir adormecer sossegado entre as quatro paredes de casa.   
É então claro que quero Cracóvia - perdoa-me, mas nenhuma cidade se compara a Cracóvia - como antes queria Lisboa.
Custa-me que isto te doa. Perdoa-me. Perdoa-me como eu não irei perdoar os polacos e não-polacos que insinuem que sejas um fosso sem graça, um buraco negro. Eu é que os lançarei para um fosso sem fundo ou lhes cobrirei o corpo com nódoas negras. Poderão escolher. Como eu te voltaria a escolher para parte integrante do meu itinerante exílio.   

Monday, December 22, 2014

Trigésima Nona Epístola

Rynek - Katowice, Vitor Vicente, Dezembro de 2015

Dear K.,

Não sabia bem como começar a escrever-te esta epístola. Não sabia mesmo por onde pegar a primeira palavra, o chamado mote. À falta do dito, usei o clássico método de rever a última vez que te escrevi.
De nada me serviu, senão para saber que foi há precisamente um mês. De aí em diante, nada. Nem uma palavra.
Mas usemos então esse mês de mutismo como mote para anunciar a despedida. Que será daqui a dez dias. 
Entretanto, fica aqui essa promessa. A de que te vou escrever todos os dias, até ao dia da minha despedida. 
E mais. Que só a ti te irei escrever, cidade abençoada que agora te vês trocada.
Por quem, devo-te ainda dizer? Tu já sabias que, de vem em quando, eu dormi fora - em Cracóvia.
Fica aqui outra promessa. Ainda que eu esteja assente em Cracóvia, de vez em quando, venho cá dormir contigo. Ao fim de contas, apenas te mudo o estatuto: do ano que vem em diante, tu serás a outra. 

Saturday, November 22, 2014

Trigésima Oitava Epístola

Estação central - Katowice, Vitor Vicente, Novembro de 2014


Dear K.,

Chegam-me os dedos de uma mão para contar o número de meses em que me encontro aninhado no teu seio. Somo todos os dedos da outra mão e obtenho o tempo exato em que sou parte da tua paisagem.
São então cinco meses e cinco dias. Que, neste momento, à falta de melhor metáfora, me parecem cinco dias e cinco noites. Assim dito, parece uma semana de dias úteis. Mas eu antes diria que se assemelha, dado o permanente pasmo e à sequela de aborrecimentos e  de surpresas, ao tempo que dura um ciclo de cinema.
Em suma, trata-se do período suficiente para termos desenvolvido aquele tipo de paixão em que não importa que continuemos a dormir juntos ou que, amanhã, ao acordar, digamos adeus, até uma pendente próxima. Essa é - ensinamento que colhi contigo - a máxima de toda a sábia errância: não ser obrigado a ficar, nem ter porque partir e sempre saber que a pouca felicidade que nos é possível está sempre coberta por um qualquer teto de estrelas. 
Quem diz errância, diz nomadismo de lençóis. Diz qualquer prática de desprendimento que transforma qualquer cidade ou qualquer cama num qualquer cais. Num desses lugares que nos dão a liberdade de, uma vez lá termos atracado, nos agarrem por uma âncora que nos permite lá voltar e simultaneamente de lá sair.   
De ti, K, que não és banhada pelo mar, que tens um ribeiro que nem chega a ser primo de um rio, que consegues ser seca sem que haja um deserto por perto e por aqui quase não soprar o vento, de ti o que eu levarei é precisamente aquela âncora. Que será esse o teu eterno souvenir. Com o secreto significado de que, como por aqui não há turistas, os únicos que podem ser tidos por tais são os que por aqui encontraram uma espécie de emprego para poder argumentar com uma desculpa esfarrapada a razão de aqui ter vindo existir. 

Thursday, November 13, 2014

Trigésima Sétima Epístola

A vida noturna de Guangzhou, Vitor Vicente, Setembro de 2014


Dear S.,

A China foi o meu vigésimo oitavo país e, na época, eu tinha precisamente vinte e oito anos. De Guangzhou guardo sobretudo as vésperas da chegada e da partida. Nunca antes me foi tão difícil passar uma fronteira como me foi sair de Macau e entrar na chamada "Mainland China". Como se a China ainda estivesse muralhada. Quanto à noite antes da partida, guardo os momentos que começaram com a minha dificuldade em contar as moedas para pagar una Tsing Tao e como as tuas mãos me ajudaram nessa e nas duas seguintes cervejas. Assim como dos três táxis que, mais tarde, dividimos. Primeiro, desse bar para outro, onde estavam montes de latinos e de árabes e onde toda a gente falava comigo em árabe. Depois, desse bar para o meu hotel. E, já na manhã seguinte, como te dei o dinheiro para o táxi, de certa maneira também nesse, que te levou do meu para o teu hotel.
Entretanto, países já são cinquenta e um e  aqui em Katowize cheguei às trinta e uma parceiras. Nada a assinalar, nem a celebrar. Senão mais um casamento, agora de idade e de parceiras.
À falta de casamento propriamente dito, entretenho-me com estes matrimónios à margem da lei. Com estas tabuadas de pervertido, com estas aritméticas de amores de marinheiro e passagens breves por países que me fogem dos pés. Com estas matemáticas e estatísticas que não são calculáveis no Excel, nem dignas de um Power Point que se preze.
Do que eu gosto mesmo é de contar dinheiro. Seja a sós e na minha mesa de cabeceira. Seja com a ajuda de tuas mãos num balcão de um bar.

Wednesday, November 12, 2014

Trigésima Sexta Epístola

Vestígios da II Guerra Mundial em Varsóvia, Vitor Vicente, Outubro de 2014

Dear A.,

És o meu melhor medidor de mood (digo mood intencionalmente, internacionalmente, não por me faltar uma palavra em Português, mas por o teu espaço ser uma terra de ninguém e como tal o Inglês é o idioma que te foi instituído).
Por mais que mood possa parecer prosaico, teu é o mérito de ser através de ti que meço o que penso, o que sonho e o que faço. Tanto se me dá se chegas até mim no aeroporto de Varsóvia ou através doutro qualquer aeroporto. És o único lugar no mundo onde o tempo é o mesmo em todas as partes.
És onde testo a minha leveza e o meu pesar. O quanto me custa levantar-me da cama ou permanecer calado e/ou quieto. 
O vento agora, como já deves ter adivinhado, trouxe-me à tua versão de Varsóvia. Trata-se de um vento que não areja, nem veda os olhos com areia. Muito menos mata a sede. Antes onde me exibes a mais violenta das verdades: que todo o tempo tem um termo, menos o teu.

Tuesday, November 11, 2014

Trigésima Quinta Epístola

Velho vagão em Auschwitz, Vitor Vicente, Agosto de 2014 

Dear S.,

Saí do meu compartimento e pus-me a percorrer o comboio, carruagem atrás de carruagem, com o pretexto de encontrar um bar ou um restaurante, um qualquer lugar com comida - e pensando que a necessidade humana de comer não se nega a ninguém, a não ser em Auschwitz ou contextos atrozes afins.
Chegado à primeira classe, fui intercetado. Como não falávamos o mesmo idioma, levei a mão à boca naquele gesto de quem quer pão, uma côdea, qualquer coisa para a boca. "Não há nada para ninguém", foi como poderia traduzir em bom Português a resposta daquele que me intercetou.
Obsceno. De resto, estas carruagens, estes compartimentos, todo este comboio, só me lembram um par de obscenidades. Os campos de concentração e as películas pornográficas.
São assim os ventos do Leste. Ventos que - pelo menos é o que dizem os entendidos sobre a Silésia - por aqui são quase inexistentes. Que pouco ou nada arejam ou apagam. Que deixam as feridas por sarar, que deixam o sangue secar e ficar para sempre.
À falta de outro tecnológico anti-tédio, escrevo-te esta epístola. Prefiro afrontar os passageiros com estes papéis do que sair porta fora do compartimento e escutar o chiar do comboio e que tanto se me parece o prolongamento do choro das vítimas de outrora. 
Tenho que acordar e entender que afinal isto já não é o Transiberiano. É seu sobrinho, se tanto. E se o é, como sempre acontece às novas gerações, não sai aos seus e degenera.
Mas isto já sou eu a fazer o exercício que nós costumávamos fazer com os nossos colegas. Com a diferença de que os nossos colegas eram-nos presença diária e estas cobaias são-me meramente passageiros de um comboio que veio de Varsóvia e de onde eu não venho e que vai até Viena e para onde eu não vou. Aparentemente, desta vez, eu vou ficar pelo caminho, em Katowice. Quando, na verdade, para onde eu vou, sempre que apanho um comboio desta envergadura, é para Vladivostok. 

Monday, November 10, 2014

Trigésima Quarta Epístola

Rio Coina com fábricas ao fundo, Vitor Vicente, Outubro de 2014

Dear P.,


Às vezes, tenho a impressão de que entrei dentro de ti há muito tempo - há mais tempo do que, legalmente falando, me encontro entre as tuas fronteiras.
Não é uma impressão nova ou de agora. Apenas acabou por ser acordada pela simples garrafa de água da passageira que vai sentada à minha frente. 
Como disse, é uma garrafa de água. Simples, sem gás, sem nada, e de nascente polaca. Que eu costumo ver pelos supermercados de Katowice, assim como era presença habitual nas lojas polacas da Irlanda e -também  posso imaginar - que esteja espalhada pelos quatro cantos de Chicago.
Desta água eu bebi várias vezes em Dublin. Seja em casa dos meus amigos polacos, seja no ginásio. Algo que, hoje, eu vejo como que já estava adivinhado que o meu caminho por ti seria traçado. Por já, atempadamente, por ti ter sido atravessado.
No entanto, tenho que assinalar que jamais sonhei com o tanto que a Silésia se parece à Margem Sul do Tejo. Ambas as regiões foram bastiões do Comunismo e, como o dito regime se destaca pela falta de originalidade, acaba por ser natural que tanto se pareçam. Tanto assim que os comunistas têm o mérito de conseguir irmanar mundos tão distintos como Cuba e a Coreia do Norte.
Talvez eu e tu comunguemos um comunismo recalcado. Que simultaneamente me segura na Silésia e me aponta a porta de saída. Que me faz sentir o conforto de casa e ao mesmo tempo me sufoca. Quem é que te disse que pareceres-te tanto a minha casa seria meio caminho para permanecer entre as tuas quatro paredes? Para um errante a porta de qualquer país está sempre aberta. Seja para entrar, seja para sair.  

Sunday, November 09, 2014

Trigésima Terceira Epístola

Antigas fábricas da Cuf - Barreiro, Vitor Vicente, Outubro de 2014 


Dear B.,

Quiseram os desconhecidos desígnios de D-us que fosse convocado um plenário no preciso momento em que eu me lembrei de atravessar o Tejo.
Não quis pagar táxi e optei por ficar em terra. Não numa terra qualquer, senão em ti, minha velha terra.  De onde tão velho se tornou o meu conhecimento que, com os anos, se me tornaste minha velha terra estrangeira.
Não sem surpresa, pois já na Silésia o suspeitara, o mais que deambulava, mais me lembrava das terras por onde agora o meu quotidiano se assentara.
A resistente presença da réstia das fábricas de outrora, o polígono industrial que, à falta de catedral, comanda a cidadania, uma certa cultura inconsequente com os seus movimentos de cultura faz-de-conta mascarados de contra-cultura, toda essa doce e decadente paisagem fez-me pensar que nunca como antes, que nunca como aqui agora, a Polónia e Portugal puderam ser tão parecidos. Seja no Barreiro ou em Palmela, seja em Katowice ou em Chórzow.
Tal era o meu pasmo que, ao fim de cinco dias na margem sul do Tejo, persistia-me o espanto por ouvir alguém falar Português por estas bandas. Como se ao fim de cinco dias eu continuasse imerso num sonho Silesiano.
Lisboa, do lado de cá do Tejo, parecia-me tão longe e por isso tão tentadora. Como Cracóvia me parece de Katowice e por isso tantas vezes recebo apelos de partir e de ir embora. 

Saturday, November 08, 2014

Trigésima Segunda Epístola

Passeio público de Kazmierz - Cracóvia, Vitor Vicente, Setembro de 2014


Dear G-d,

Não preciso de pedir o teu perdão. Assim como não preciso que me imponhas a punição. Poder, até posso pedir. Tal sempre irá ou deixará de acontecer de acordo com a tua vontade.
Porque tens o pleno poder sobre a palavra e sobre o plano. Porque tens o desprendimento de tão depressa poderes perdoar aqueles que porventura virás a punir, e vice-versa. Ainda que a todos, hoje, ontem e amanhã, igualmente ames. 
És, acima de tudo, amor. Um amor atravessado por um imenso abraço e pelo cano de uma espingarda. És, acima de tudo, um pronto-a-perdoar e um pronto-a-punir.
Não nos desvelas a sabedoria dos dias em dogmas, senão nos obrigas a abrir os olhos e a tomar notas. De vez em quando, trocas-nos as voltas para que saibamos que a única direção possível é a do sagrado. 
Trata-se de este ensinamento: de nos sabermos e assumirmos livres enquanto estamos supervisionados ao teu consentimento. Perdoa-me então, se aqui em baixo, tenho sido reles e rasteiro, tanto contigo como com aqueles que criaste. Perdoa-me se, sob qualquer cegueira, semeei o sinistro ou se em silêncio estive quando não devia ter estado calado ou se fui surdo ao uivo com que se expressa o sopro do mundo. 
Peço-te, continuarei a pedir-te, a oportunidade de ser uma dessas centelhas de luz, uma dessas centelhas com que iluminamos os passos entre o aqui, o agora e o porvir. Peço-te somente isso, além do teu poderoso perdão por todas as falhas que possam tomar parte no meu passado. 

Tuesday, October 21, 2014

Trigésima Primeira Epístola


Centro da cidade de Kutaisi - Geórgia, Vitor Vicente, Setembro de 2014

Dear K.,

Quem questionar o porquê de te visitar é porque se ainda encontra longe de me conhecer.
Para começar, devia-se ter perguntado porque vivo eu em Katowice. Porque quem decide vir viver para um cidade como Katowice facilmente pode vir a dar uma volta a uma cidade como tu. Como se entre ti e Katowice se estendesse uma ponte estreita e trémula por onde muitos poucos podem passar.
Poucos, esses que são tidos por loucos na mente pequena e estreita dos tontos.
Tontos à parte, devo o ter chegado a ti a Katowice. Como se este caminho fosse uma conquista. Parte de um ciclo, começado há um ano atrás, ao ter voado para Varsóvia. 

Monday, October 13, 2014

Trigésima Epístola

Outono dourado - Katowice, Vitor Vicente, Setembro de 2014


Dear K.,

No começo, foram alguns cabelos agarrados à almofada. Depois, um casaco de couro. Já mais tarde, pedaços de pele no colchão. Pelo meio, ocasionalmente, colares. Por fim, uma caixa de fósforos.
Parece uma sequência sinistra, Que tanto tem de serial killer, como de detetive que anda no encalço do dito, a tentar interpretar os sinais.
No caso, há o sinal que tens no canto da boca. Para onde apontei com o dedo, antes do nosso primeiro beijo. Esse inesquecível sinal, como os inesquecíveis são os sinais que deixámos pela cidade e pelo meu insignificante micro-quotidiano. Para ser sincero, esta cidade está impregnada com os nossos sinais. Nela navego à deriva e a isso digo ser liberdade, que é como os seculares tendem a chamar a não existirem escolhas, nem sombra de dignidade. Eu cá chamo-lhe puzzle imperfeito, a que falta a peça fulcral.
Mas é bem feito. Ninguém me mandou levar tão a sério essa solene cerimónia de sangue que celebrávamos na hora da carne. Levei essa aliança sanguínea demasiado longe. Confundi o ato do amor com uma lição de anatomia.
Começou com cabelos e fez-se casaco de couro. Espalhou-se pelo colchão em pedaços de pele e em ocasionais colares. Até que culminou numa caixa de fósforos. Na realidade, assim me foste avisando que o teu corpo é tão quente por nele transportares um rastilho. Eu só não entendia que, algum dia, tivesse que estoirar como estoirou. 

Sunday, October 12, 2014

Vigésima Nona Epístola

Bazar de Kutaisi, Vitor Vicente, Setembro de 2014


Dear K.,

Escrevo-te de um quarto de hotel em Kutaisi. Onde o teu sangue errante, esta tarde, chegou até mim. 
Escrevo-te com uma esferográfica de tinta azul. No entanto, ao olhar para o papel -sim, porque eu primeiro ainda escrevo no papel - sinto que escrevo com o teu sangue e, por com o teu sangue escrever, sinto que canto o teu sangue e transformei o papel numa pauta de música.
Perante tudo isto, pasmo. Depois, penso porque tu, Gypsy-Jew, juntamente com a Polónia e a Geórgia, me apareceram nas sombras de um sonho Silesiano. Pergunto-me também pelo que me trouxe até uma cidade como Kutaisi, enquanto o novo single de Leonard Cohen e algum album dos Orkestina continua a fazer-se ouvir dentro de mim. 
Não consigo chegar a conclusão nenhuma, senão que o Cáucaso tem o quê de minha casa e, nessa condição, também de minha causa. 
Também me sinto na condição de dizer que no teu sangue subsistem, acima de tudo, o Silesiano, o Semita e o Cigano. Não necessariamente por esta ordem, pois tanto o segundo como o terceiro tendem a ser irrequietos, a sair do seu sítio e a trocar de posição ou permanecer na mesma por mera traquinice ou teimosia. Quanto ao Francês, de tão frouxo, foi-se, ou pouco mais ficou do que a força sem graça de um galo a anunciar mais uma aurora a um mundo que não lhe faz caso. 
Antes os nossos antepassados que erguiam, aurora atrás de aurora, uma tenda em todas as terras. Antes o antigo calor do teu corpo, a aquecer-me até à altura das estrelas. 

Saturday, October 11, 2014

Vigésima Oitava Epístola

Morskie Oko (Olho do Mar) - Zakopane, Vitor Vicente, Setembro de 2014


Dear K.,

Zakopane rima com fim de semana. Eis o mote para que, pela poeira da estrada fora, se possa começar a fazer poesia.
Zakopane combina connosco. Zakopane combina com um fim de semana com travo de viagem - e por viagem entendo eu aqueles dias em que a vida são dois divinos dias.
Eis outra equação, a que se atravessará ao longo de toda esta epístola.
Posto isto, para que esta epístola escorra, apenas me resta ir atrás do teu sangue errante e ver o que se esconde atrás das mil e uma montanhas de Zakopane. Sejam lagos que nos olham nos olhos como esquivos espelhos, seja a cidade feita de casas construídas com madeira e queijo.
Para terminar, o tempo sem termo que se tende a experimentar nas águas tépidas das termas. Quatro asséticas horas em que me senti tão quente, como quando me aqueço com o teu sangue errante.
No regresso, a promessa de partilhar mais um partida. Ou não estivesse no nosso horizonte a itinerante Terra Prometida.

Wednesday, September 10, 2014

Vigésima Sétima Epístola

Café no Hotel Campanile - Katowice, Vitor Vicente, Julho de 2014

Dear K., 

Coube-nos este espontâneo descontentamento pelo mundo e pelo tempo que nos foram dados. Almejamos mais, melhor - mas não acreditamos no melhor dos mundos possíveis, nem que alguém possa mudar o mundo para algo melhor. O nosso incomum contentamento consegue cumprir-se em poder permitir-se a ficar parado diante do mar. 
Mas deixemos o mar para mais adiante. Esse mar que queremos que seja nosso. Pelo caminho erguer-se-ão montanhas, até que tenhamos conquistado esse território tremendo que, mais do que um espaço, tem que ser um tempo que já em si contemple um espaço.
Nós gostamos do tempo do aeroporto. Quase tanto como do tempo que há em estar um no outro. No fundo, do tempo da viagem, incluindo o que lhe é prévio e o que lhe é posterior. Encontramos no tempo da viagem um tempo vago, leve, tão leve que pode ser levado dentro do vento e ter a imunidade invejável dessas coisas que, quanto mais ambulantes, mais inalcançáveis
Dessas coisas que concluem um ciclo mais que perfeito, sem que saiam do mesmo sítio. Coisas tão simples e tão revestidas de significado, como um templo ou uma tenda. Em que tudo tem que ter um termo para que se assegura o próximo mote. Em que o amor é a única arma apta e pronta a abater o tédio e outras formas mundanas da morte.  

Tuesday, September 09, 2014

Vigésima Sexta Epístola

Mesa de matraquilhos na noite de Cracóvia, Vitor Vicente, Julho de 2014


Estive quase para te tratar por B2 ou por B&B. Também te poderia ter tratado por C, pois estás no mesmo edifício que o meu escritório e costumo passar pelo teu espaço para abastecer o estômago antes de entrar ao trabalho.
Para ser sincero, não te assemelhas a nada disso. Pareces-te antes a um velho prostíbulo, mal e porcamente restaurado. Em quê?, perguntas-me. Em tudo, respondo. E enumero.
Começo pelo pessoal que te frequenta. Afinal os fregueses é que fazem os lugares. A fauna é francamente elitista.  Muito managers das empresas e sobressaem os expatriados. (A Polónia, tal como Portugal, é um país pobre em vários aspetos, logo estupidamente elitista). Mas o que predomina são os casais que se destacam por as respetivas senhoras transportarem os pratos à mesa, onde o marido as espera. Ou os casos em que o homem, normalmente mais velho, se senta à mesma mesa que uma miúda mais nova que só o escuta e a todo o assunto assente com a cabeça.
A música, para ajudar à acústica de prostituta, tende a ser atmosférica, senão suavemente atravessada por uma voz feminina que só sussurra como quem suplica ou pede socorro. Já as paredes e os ocasionais quadros e os sofás roxos, juntamente com os jarros, só ajudam a crer que, a qualquer momento, pode crescer um varão do chão e alguém anunciar que a próxima se chama Tatyana. 
Toda a tua realidade é a do revivalismo. Talvez sejas um dos últimos e derradeiros redutos com réstia Soviética em terras da Silésia. Consegues surpreender tudo e todos, até quem já via a coisa preta por pretas não aparecerem por estas bandas. 
Depois da magia negra, bem que podias passar ao milagre dos matraquilhos. 

Friday, September 05, 2014

Vigésima Quinta Epístola

O rio de aldeia que corre pela cidade de Katowice, Vitor Vicente, Agosto de 2014


Dear B.,

Não foi só há três fins de semana que estive de volta a ti. Eu volto a ti várias vezes. Bastantes mais do que imaginas.
Volto a ti nesse inesperado templo que eu encontro em todos os ginásios que frequento.
Entre os exercícios, existem aqueles que são mais apropriados do que outros às viagens através do pensamento. Eu destacaria aqueles momentos passados em máquinas que nos movem sem que nos deixem sair do mesmo sítio. As passadeiras ou as bicicletas, duas máquinas que são verdadeiros e moderníssimos veículos de viagem, que nem aviões.
No caso presente, as passadeiras estão de frente para os televisores (e como eu fico contente em, através do polaco, redescobrir o bom Português que perdi em prol de Inglês da Irlanda e do vai e vem das viagens.)
Voltando ao dito aparelho. Nele desfilam - como numa passerelle - imagens de partes da Polónia e a respetiva previsão meteorológica. Partes tão distintas como a praça central de Cracóvia, as montanhas de Zakopane ou a estância báltico-balnear de Gdansk.
Tal como, há alguns anos atrás, eu me entretinha a correr sem sair do mesmo sítio e a ver semelhante desfile do império catalão. Na época, paisagens tão díspares como o Mosteiro de Montserrat, as praias da Costa Brava ou o centro de Perpignan.
É só isso. O suficiente para me sentir, simultaneamente, alicerçado a ti, Barcelona, e de te içado. Assim como abençoado por tudo aí ter (re)começado, como numa ressurreição, com destino a cidades debaixo de céus nunca antes atravessados.

Sunday, August 31, 2014

Vigésima Quarta Epístola

Vista do ginásio - Katowice, Vitor Vicente, Agosto de 2014

Dear B.,

Eu nunca te disse que te tenho uma dívida. Aliás, desde que abandonei a terrinha, jamais voltei ao teu templo. Tentei, é certo que tentei. Assim como, cabisbaixo, confesso que não consegui entrar para te dizer quanto aprendi contigo.
Admiro-te sem que nunca te tenha chamado de mestre. Nem quando frequentava o teu templo - na época, eu era demasiado refratário para te tratar enquanto tal, embora fosse dos poucos que te tratava por tu e tu (sim, tu) encontravas nisto um misto de elogio e de deferência.
Eis que é chegada a vez, desta cidade que tanto se parece com a nossa e através desta epístola,  de assumir o meu imenso agradecimento. A fim de assinalar as repercussões dos teus ensinamentos, tomo a liberdade de recapitular o meu percurso, cidade por cidade e respetivos ginásio por ginásio.
Ainda em Portugal, apenas interrompi as idas ao teu templo durante um mês. Foi o tempo que durou até ao dia em que me telefonaste para me dizer: "Corri com ele, então podes voltar quando quiseres". Em Barcelona, tal como tu sapientemente me adiantaste, tanto os ginásios como os instrutores eram estupendos. No entanto, eu era ainda independente o bastante para poder desfrutar das infra-estrturas sem outros instrutor senão tu à distância. Depois, em Dublin, foi o descalabro. Eu próprio descambei ao ver-me rodeado por tudo o que podia suscitar a tua irritação.
Só que em Katowice, como em muita outra coisa, sempre que vou ao ginásio, sinto-me de volta à velha casa. Aqui dá gosto ir ao ginásio, como gosto dá ir a um bom restaurante em qualquer parte do mundo. Sobretudo, quando ouço aquelas músicas de merda, a que chamo de banda-sonora da "silly season", e que, enfim, farão parte da acústica de quando comecei a construir um quotidiano em Katowice. De quando tudo começou a fazer sentido. 

Thursday, August 28, 2014

Vigéstima Terceira Epístola

Mar Mediterrâneo - Palma de Mallorca, Vitor Vicente, Agosto de 2014


Dear D.,

A ilha cabe-te na palma da mão. Porque Mallorca tem-te a dimensão do mundo. Não estás isolado por teres água por todos os lados. Antes pelo contrário. O azul é um oásis que só acentua a distância a que estás do deserto e o quanto estás entranhado no milenar império Mediterrânico.
(Este império também é meu. Esse mar, esse território. Tudo o que vai de Barcelona até Tel Aviv em mim vive, por mais que me encontre em Katowice).
Mas não nos debrucemos mais sobre o tema do território. É pior do que um penhasco. É um precipício sem propósito, nem fim. Deixemos os Ingleses debruçados nas suas modalidades olímpicas que não contemplam piscinas.
Apesar disso, eles até que são divertidos. Mais do que os Italianos ou os Argentinos - farinha do mesmo saco, senão mesmo um saco, como diriam os irmãos Brasileiros. Com as devidas exceções. Porque, ao fim e ao cabo, somos todos diferentes uns dos outros e, ao mesmo tempo, iguais naquilo que menos prevíamos irmanar. 
Por tudo isso, meu velho amigo, continuaremos a viajar. Tenho a certeza que já andámos no ar ao mesmo tempo. Até ao próximo abraço.     

Vigésima Segunda Epístola

Uma cervejaria na Catalunya - Barcelona, Vitor Vicente, Agosto de 2014 

Dear X.,

Estamos cada vez melhores. Levamos uma vida à moda da vindima. Comemos verduras que nem coelhos e chamam-nos de incansáveis caçadores por isso e não só.
Rimos muito. Compartimos um mundo em que a realidade se rende ao riso. Ninguém nos entende, mas também somos demasiado gentis para não chamarmos de estúpidos a ninguém por isso - por outras razões, sim, que o fazemos, ainda que sejamos suficientemente polidos para o podermos sorrateiramente fazer por outras palavras.
Escrevemo-nos como no tempo da pena e do pombo-correio. Longos emails, como longas são as nossos encontros e o tempo de espera entre eles.
(Eu, como sempre, vou mais longe no exagero. Escrevemos-nos com tinta da China. Por gostarmos do gozo negro, que vai de São Paulo até Guangzhou.)
Continuas maluco por cremes. Cada vez mais. É da idade. Eu por Israel. Para a próxima, trago-te uma encomenda de cremes do Mar Morto. 
Já faltou mais, meu velho amigo sem rugas, já falta pouco para o próximo reencontro.

Saturday, August 23, 2014

Vigésima Primeira Epístola

Os banquinhos da Rambla - Barcelona, Vitor Vicente, Agosto de 2014

Dear H. 

Em boa hora nos reencontrámos. E em bom lugar também. Nessa cidade que foi a porta de saída do nosso país e que nos será o segundo berço para sempre: Barcelona.
Em boa hora me deste um par de chapadas. Foi, de resto, na última vez que nos tínhamos visto - já lá vão nove anos, meu velho amigo. É certo que já não te lembravas, mas eu jamais o esqueci - até porque, para mim, foi uma daquelas minhas noites, daquelas, enfim, para esquecer. Por isso em boa hora me deste um par de chapadas e elas ficaram-me para sempre.
Só não ficou o melhor par de chapadas da história porque, há coisa de dois mil e tal anos atrás, alguém também deu uma bela de uma chapada no dito profeta. Chapada essa que só pecou por não ter sido seguida por outra.
Mas regressemos à nossa sequência. É mais sincera. E levada a vodka ou a cañas, consoante o acento. Sim, acento. Porque somos fluentes naquele Portuñol tão próprio dos Portugueses que vivem em Espanha e se esquecem que estão a falar Português. Um pouco mais e estamos de tapas. Só que na aceção brasileira da coisa. Como naquela noite em que me deste um par de chapadas. Apenas mudam-se os lugares, mas mantém-se as memórias. 
É um lugar comum dizer-se que a vida dá muitas voltas. Sobretudo, na boca daqueles que dão muitas voltas ao mundo. Por saberem que a vida mais não é do que ir dar uma volta pelo mundo. 

Thursday, August 21, 2014

Vigésima Epístola

Zona de lazer do aeroporto de Barcelona, Vitor Vicente, Agosto de 2014


Dear B.,

Como já é praxe, volta a ser difícil deixar-te. 
Quando me fui embora de ti, rebentou um vulcão na Islândia e o trânsito aéreo em grande parte da Europa ficou bloqueado por quase uma semana. Durante esse tempo, fiquei retido nas ruas - melhor dizendo, arrastei-me pelas tuas ruas, como me arrastara nas primeiras semanas em teu seio. E assim se adiou a nossa despedida e o começo da minha nova vida em Dublin.
Depois, das três vezes que te revisitei, ia perdendo o voo. (Coisa que não é meu costume). A primeira vez por te apanhado boleia de um condutor que confiava mais no GPS do que nas indicações das placas. A segunda por ter bebido demasiado na véspera, ter ido demasiado cedo para o aeroporto e ter acordado cinco minutos antes de fechar o check-in. A terceira por ter apanhado o comboio que vinha e não o que ia para o aeroporto.
Desta vez, tudo parecia correr sem sobressaltos. Mas não. Já estava eu dentro do avião, quando o capitão anunciou que íamos levantar com quase uma hora de atraso. O que nem é tanto, exceto se pensar que o tempo de atraso era o mesmo que a duração do próprio voo (com destino a Palma de Mallorca).
Agora tenho a certeza que se trata de um ajuste de contas. Que utilizaste a companhia aérea que me deu pão e cidades enquanto estive dentro de ti. Para não me esquecer que Katowice também te pertence, ó ponte permanente. 
Nada é por acaso. Muito menos o nosso imenso amor. 

Monday, August 11, 2014

Décima Nona Epístola

Cela em Birkenau II - Auschwitz, Vitor Vicente, Agosto de 2014


Dear S.,

Tenho tantas saudades tuas. És como uma irmã -  uma irmã maior. Uma irmã assim, maior de idade, é mais do que uma irmã. É uma irmã-mor. Uma irmã-mãe. Mais mãe do que as muitas mães deste mundo e do outro.
Sinto falta das conversas que tinhas a caminho ou vindos do trabalho. De te intercetar no caminho, subitamente, após te avistar, a andar como só os Judeus podem andar.
O meu tópico favorito era o Holocausto. Assim dito, a seco, pode parecer mórbido, de mau-gosto. Mas nós usávamos o Holocausto como contexto para tentar adivinhar qual seria o comportamento dos nossos colegas e, desta maneira, tentar compreendê-los um pouco melhor. Tudo hipotético, claro. Primeiro, porque nunca sabemos que esperar das pessoas - por mais que passemos, de Segunda à Sexta, oito horas perto delas. Segundo, porque numa situação como o Holocausto não há como saber quem seria o que seria ou deixaria de o ser. Tanto assim que aquele que nomeámos de Schindler revelou-se um anti-semita disfarçado.
A sós, eu continuo a fazer este exercício com os meus colegas - a que tu chamarias de bgiginas. Aqui, como em todo o lado, há de tudo. Vítimas e vilões. Contudo, o povo polaco, de tão subserviente, de tão dado a acatar ordens, é a presa perfeita para os animais arianos. Isso deve-se (e cito uma bgigina de origem Judia) à falta de auto-estima, de auto-confiança.
Não é por acaso que Auschwitz foi levado a cabo pelos Alemães em solo polaco. Passe os estereótipos, poderias imaginar, por exemplo, os Franceses a cometer tamanhas atrocidades aos Italianos no seu próprio território?

Wednesday, August 06, 2014

Décima Oitava Epístola

Caminho de ferro no campo de concentração - Auschwitz, Vitor Vicente, Agosto de 2014

Dear G-d,

Auschwitz é difícil em todos os sentidos. Até de o dizer - de o dizer em toda a sua injustiça. De sintetizar o sem-número de sensações que nos toma de assalto. Que nos atravessa e nos trespassa. Que nos tortura.
Mas eu tomei a abençoada liberdade de o resumir em cinco momentos que considero serem os meus momentos-chave.
O primeiro foi o espanto. De estar diante, de estar a ver olho nu toda essa medonha realidade que, antes, só existia no écran. Não com aquele espanto misturado de encanto com que se revisita o Times Square ou qualquer outro folclore dos filmes de New York. Aqui trata-se de um espanto que se desfaz em espuma de raiva, de revolta. Um espanto incrédulo. Em como isto existiu, como isto evoluiu a tais extremidades. Como isto pode ter sido pensado e mantido.
Depois, os meus passos que, enquanto caminhava em Birkenau e quanto mais sozinho me encontrava, mais se multiplicavam. Soavam-me como os passos do meu recente passado. Que me diziam que os prisioneiros dos campos de concentração são prisioneiros para sempre - que serão permanentemente prisioneiros. Que me diziam que aqueles que aqui perderam a vida são como nós: espécie de presas do ódio cego dos predadores que hoje, como naqueles tempos, encontram-se bastante perto.
Nas celas - que me desculpem, caso vos pareça mal - tive vontade de me deitar, lado a lado com os espectros dos prisioneiros. Numa espécie de solidariedade. Como se as minhas costas fossem à medida daquelas camas de merda, duras, e também tivesse eu que esperar a minha vez pela câmara de gás - enquanto via a minha vida irremediavelmente a andar para trás. Nunca me senti tão comigo e com os meus, senão nos momentos em que estive, a sós, nas celas dos campos de concentração.
Quando entrei num dos crematórios, de pouco ou de nada valeu o fato de saber que ia ver os fornos. Por mais que estivesse devidamente assinalado, e até sob a forma de alerta para os mais sensíveis, eu não consegui conter um grito. Porque consegui ver os corpos a serem cremados e a crueldade com que os animais arianos tratavam esses corpos. Consegui ver quão superficial é a linha entre um animal saído da selva e um ser civilizado.
Sair, saí eu de Birkenau com um sorriso enorme, que surpreendeu e ofendeu os que acabavam de chegar.  Não culpo ninguém. Nem eles, que não entendiam que eu olhava para a porta de saída do campo de concentração - e sentia que estava a sair de lá, depois de muito, mas muito tempo; nem eu, que também não sabia que porque sentia isso, porque saí assim tão sorridente, tão sinceramente sorridente. 

Sunday, August 03, 2014

Décima Sétima Epístola

Parque de Chorzów, Vitor Vicente, Julho de 2014 

Dear K.,

Ontem à noite, ao deitar-me, encontrei alguns dos teus cabelos na minha almofada. E esta manhã, antes de ir trabalhar, li dois poemas de Yehuda Amichai sobre o mesmo assunto: os cabelos deixados na almofada e encontrados no dia seguinte.
Como chamar a esta coincidência? Que sentido esta sequência? Para já, só me cimenta a certeza que D-us quer dizer-me algo através de ti.
Entretanto, o conflito continua. Não, os conflitos continuam. Porque Israel não é um caso isolado. É apenas o que do mundo está mais à mão, mais à mercê dos mísseis. Mais indefeso e isolado. Abandonado pelo mundo. 
Não me tenho conseguido alhear. Cada tentativa de atentado nalgum dos lugares onde estive e me são especiais, é como um ataque ao quarto onde os teus cabelos ficaram agarrados à almofada.
Basta de sangue inocente. O único sangue que deve circular é o teu sangue semita, pelas tuas veias, junto com o meu sémen. 

Tuesday, July 29, 2014

Décima Sexta Epístola

Nikiszowiec - Arredores de Katowice, Vitor Vicente, Julho de 2014


Dear K. 

Durante muito tempo, necessitei de silêncio para ler e, sobretudo, para escrever. Depois, sem que tenha dado conta da mutação, o silêncio metamorfoseou-se numa certa banda-sonora, tendencialmente a cair para o Jazz e sempre instrumental. 
Mas em Katowice a acústica é outra. Alterno entre o vai e vem da auto-estrada que chega ao alto deste décimo andar e o televisor ( e voltar a dizer televisor em vez de TV, tem para mim uma ternura do tamanho do mundo). 
Acima de tudo, o que te quero dizer, K, é que adoro a tua orquestra. Como ela toca as sinfonias do silêncio Silesiano, entrecortado pelo chegar e partir de um ou outro "tram", de um ou outro programa de televisão, também ele entrecortado por um ou outro "reklama" (e o fato de a palavra "reklama" ecoar a palavra "reclame",  palavra que eu entretanto esquecera, também tem para mim tanta ternura). 
Tudo o resto é ruído humano, demasiado humano para que nem precise ser expulsado pela orelha por onde não entrou. É que, chegado a este estágio, já quase nada me entra por orelha nenhuma. Cheguei à chamada surdez seletiva e sou snob até à ponta das orelhas com que pouco mais mais ouço do que o silêncio Silesiano e a acústica de Katowice. 

Friday, July 25, 2014

Décima Quinta Epístola

Spodek - Katowice, Vitor Vicente, Junho de 2014

Dear K. 

Vivo no teu seio há um mês, mas é como se tivesse vivido aqui toda a minha vida. Essa sensação é derivada do meu vasto conhecimento do mundo. Não, K, não tens com que te preocupar contigo. Não és mais, nem menos misteriosa do que as demais cidades. Sou só eu que, depois de ter passado pelas cidades dos cinquenta países que conheci, rapidamente capto o vai-vem, as várias vibrações que movem um perímetro de terra a que se logrou dar um nome próprio.
É certo que ainda me perco a traçar caminhos dentro de ti. Tão certo como que me irei continuar a perder. Não entendo patavina do teu idioma, apenas uma palavra ou outra. O suficiente para saber que, por mais que aprenda o teu linguarajar, se assim o quiser, sempre estarei nalgum lugar, longe, onde tudo possa reduzir a ruído humano.
Quero ainda acrescentar que me sinto estrangeiro e contente com esse estatuto. Que, pela primeira vez, existem os da casa e poucos patos bravos como eu. Que, por mais que me custe ter que andar uma hora de autocarro até Cracóvia e de lá nunca me apeteça voltar, quando regresso, sei que é no teu seio que me quero aninhar. 
Tens o condão de me fazer sentir em casa, sem o sufoco que sente quem em casa está condenado a permanecer para sempre. Que o teu calor e até a tua comida imprópria para o calor, que os teus parques perigosos, assim como as tuas perigosas estradas, tudo isto, misturado, afinal me transporta até aquela casa de férias de que a criança que fui sempre careceu.
E tudo isto é compatível com o fato feérico de haver quem aqui viva como se aqui se pudesse viver a vida de todos os dias. Já não me espanto como me espantei com quem burguesmente morava em Barcelona. Conheço demasiado mundo para captar quase todas as cidades em cinco dias. Leio o singular através do arquétipo. O que foi também o fruto das horas que passei a estudar Filosofia. Bebo dessa fonte, sem que pouca gente perceba porquê. Lá está, quedam-se pelo particular, pelo comezinho e ainda se acham os maiores por limparem o cu a papel higiénico devidamente reciclado. 

Wednesday, July 23, 2014

Décima Quarta Epístola

As tentações de Katowice, Vitor Vicente, Julho de 2014

A ti, D., me dirijo, na derradeira noite neste décimo andar. Noite em que, esperava, estar a escrever algo mais elevado, muito mais elevado do que isto. Algo do tipo: "do alto deste décimo andar me despeço" e assim se parecesse à epístola de um suicida, pois todas as despedidas têm o seu quê de luto.
De luto ficamos nós quando não matamos o desejo. Mais ainda quando ficámos a um pequeno passo. 
Ainda no táxi, eu vi quatro long legs, de calções, a aproximarem-se do que, nessa noite, ainda seria o meu prédio. Na hora, pensei se, por uma noite, ainda poderíamos partilhar o mesmo prédio, que é como quem diz o meu quarto.
Saí do táxi e senti as quatro long legs, mal grado a ausência de troc-troc, atrás de mim. Cheguei à porta alguns segundos antes delas, a tempo de a abrir: primeiro para elas, depois para mim. Sorriram.
Sorriram, de novo, quando as vi à entrada do elevador. Não me engasguei a perguntar se viviam aqui e a acrescentar que, assim sendo, seríamos vizinhos até amanhã. Perguntaram-me onde iria viver, confirmei onde era o meu novo bairro, congratularam-se com o fato de ser perto. Uma delas, que parecia mais embriagada em todos os sentidos, ainda me disse que queria ir a essa festa. Mas eu só disse que, por enquanto, estava no décimo andar. Até amanhã de manhã. Mas não frisei que é a festa era aqui e agora. Não as convidei a tomar cervejas que, por acaso, até tinha no frigorífico. E assim foi-se a festa.
E estas, dear D. ficam-me atravessadas. Não até amanhã de manhã, senão para sempre, pelo menos em todas as manhãs em que acorde sozinho perante a imensidão do mundo. Especialmente nessa derradeira noite no décimo andar em que, em vez de estar a escrever algo lírico, acabei por escrever algo que lastimo. À falta de ejaculação, valeu-me a escrita enquanto exercício de exorcismo. 

Décima Terceira Epístola

Pistacchio - Gelataria no Bairro Judeu de Cracóvia, Vitor Vicente, Julho de 2014

Dear K.

Mal sabes tu o gozo que eu tenho em saber que o meu sémen circula, junto com o teu sangue semita, através das tuas veias.
Talvez, desconfies. Eu até me descosi, várias vezes, entre as várias canecas de cerveja que gentilmente trouxeste à mesa. Também maneiras te desvelei que, de vez em quando, me dá para escrever.
Não, não me contive. Todo o conjunto da tua cara, aliado às tuas long legs, foram demais para poder ter ficado calado e/ou quieto. Dirão alguns que demorei a dar-te o primeiro beijo. Como sempre, contraponho com a minha timidez. Em que ninguém crê, a começar por mim. 
Sou sarcástico, eu sei. Mas o assunto é serio, esse o de o meu sémen circular, junto com o teu sangue semita, através das tuas veias. Assunto transcendental, união milenar que encontrou em dois corpos o lugar de reencontro e na sede do sexo a saída para uma certa sensação de alívio, de quem sacode o sufoco.
Como se tivéssemos num cerco, numa espécie de gueto. Pressionados sempre por pessoas que não percebem como podemos nós nascer e morrer com a mesma imperdoável idade.
Eu não aspiro à absolvição. Basta-me a benção de saber que a esta hora, estendia na tua cama como estendida ocupaste todo o meu sofá, o meu sémen circula, junto com o teu sangue semita, através das tuas veias. 

Sunday, July 20, 2014

Décima Segunda Epístola

Álcool 24/7 no Bairro Judeu de Cracóvia, Vitor Vicente, Julho de 2014

Dear J.,

Já não estás aqui, mas é como se por aqui perto continuasses. Mais do que me teres trazido a vida que tenho dentro das malas, trouxeste-me uma humana aragem, justamente quando eu me encontrava moribundo para o mundo. 
Tu não sabes, muita pouca gente o sabe. Eu próprio sou uma dessas pessoas. Um dos tantos que ignora que eu tenho sido o meu pior inimigo. 
Nem sempre tenho levado a minha solidão da maneira mais saudável. Deixo que o tédio me destrua os dias, me deprima. Me leve a desistir e a, desinspirado, não ter outro intento senão auto-destruir-me.
E não, não é só com o sabido álcool que me auto-destruo. O álcool, quando o tomo à luz do dia, deita-me abaixo. Como se a luz do dia me encadeasse o cérebro e tudo escuresse e entristecesse. 
Preciso mais de ti do que tu pensas. Inclusive, das tuas queixas, das tuas neuras por razão nenhuma e das tuas paranóias que tão bem combinam com essa narigueta.
Basicamente, preciso da tua proximidade humana. Para equilibrar esta extensa solidão acumulada.  

Décima Primeira Epístola

Um dos cento e tais quiosques em Cracóvia, Vitor Vicente, Julho de 2014

Dear T.

Assim que cheguei ao apartamento que aluguei em Cracóvia, poucos minutos depois, dei conta de que deixei a caneta em casa - que é como quem diz em Katowice, o que soa estranho, quase tão estranho como andar de autocarro durante uma hora para vir aqui dormir duas noites.
Adiante, que se faz tarde. No entanto, fez-se fácil a empresa de encontrar uma caneta por estas bandas.Ao fim de dez minutos, comprei uma caneta num quiosque. No fundo, é para isso que existem quiosques: porque ainda existem pessoas que escrevem com canetas. E vice-versa. Pessoas que ainda escrevem no papel, que ainda escrevem postais e, quando se põem a escrever emails, escrevem-nos longos, pela simples razão de se esquecerem de que estão a escrever eletronicamente.
Quiosques como estes, com canetas, jornais e bugigangas, só continuam a existir em cidades charmosas como Cracóvia, ou dadas à inteletualidade, como Buenos Aires (By the way, a Argentina está a jogar agora e o pessoal no bar está a assistir).
Mas não me interessa. Tudo o que te quero dizer, T. é que não te tenho mais como tirana. Antes como orientadora, enquanto diretriz. Matrizes, pró-isto ou anti-aquilo, todos temos. 
Ao menos nós, tradicionalistas, sabemos ao que vamos e o que vemos. E de mais nada precisamos, para não nos sentirmos vedados, mas sim desvelados.