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Tuesday, July 01, 2014

Primeira Epístola

Centro Comercial Silesia City Centre - Cracóvia, Vitor Vicente, Junho de 2014

Dear K.

Debruçado na varanda deste décimo andar, enquanto escuto o silêncio da Silésia, concluo: mudei-me para cá para ajustar contas com o meu passado. Trata-se então de um ajuste de contas. Em que não há outro tribunal senão o tempo. Um processo um tanto ou quanto Kafkiano (por mais que me custe adjetivá-lo assim, pois hoje em dia toda a gente usa essa palavra, inclusive quem nunca leu uma linha de Kafka). Um julgamento de alta e etérea instância, presidido por Jerusalém. Como se, desde sempre, eu tivesse estado à espera de receber uma chamada para estar aqui. 
Aqui ou noutra cidade que chamasse a si os soviéticos e um outro czar. Em viagem, quando me encontrei em certos lugares, várias vezes fui assaltado pela seguinte sentença "Eu não era para estar aqui". 
Desta vez, não se trata de uma viagem. Por mais que, quando se decida existir enquanto expatriado, a vida seja uma contínua viagem. Por mais que paragens, pessoas e paisagens pareçam ser mais do mesmo, metamorfoses de um só percurso. Deparei com pessoas que ficam espantadas por eu ter assentado arraiais em teu seio - até porque aqui, acrescentam de mãos abertas e vazias, nem há dinheiro. Outras acham que, sendo eu, até é aceitável - ainda que, acrescentam estes, podia ser Budapeste ou Varsóvia, agora Katowice? Versão polaca do Barreiro? O que estes incrédulos ignoram é que eu cresci com a queda do Muro de Berlim e o folclore soviético ficou-me no sangue. Não é por acaso que, assim que tive um "career break", fiz o Transiberiano, de uma ponta da Mãe Rússia à outra. Não é por acaso que a alma judia me foi revelada no respetivo bairro de Praga. 
Dito isto, até parece que por aqui me sinto confortavelmente em casa. O fato de não entender o idioma em redor e me reduzir a realidade circundante a ruídos só me cimenta esta certeza: na Europa de Leste fica aquela casa de férias que nunca tive e de que sempre careceu a minha infância. É fato também que é uma casa de férias. Tão fato como existir enquanto expatriado ser sinónimo de tirar férias do triste e mesquinho mundo dos outros. 

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