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Wednesday, September 10, 2014

Vigésima Sétima Epístola

Café no Hotel Campanile - Katowice, Vitor Vicente, Julho de 2014

Dear K., 

Coube-nos este espontâneo descontentamento pelo mundo e pelo tempo que nos foram dados. Almejamos mais, melhor - mas não acreditamos no melhor dos mundos possíveis, nem que alguém possa mudar o mundo para algo melhor. O nosso incomum contentamento consegue cumprir-se em poder permitir-se a ficar parado diante do mar. 
Mas deixemos o mar para mais adiante. Esse mar que queremos que seja nosso. Pelo caminho erguer-se-ão montanhas, até que tenhamos conquistado esse território tremendo que, mais do que um espaço, tem que ser um tempo que já em si contemple um espaço.
Nós gostamos do tempo do aeroporto. Quase tanto como do tempo que há em estar um no outro. No fundo, do tempo da viagem, incluindo o que lhe é prévio e o que lhe é posterior. Encontramos no tempo da viagem um tempo vago, leve, tão leve que pode ser levado dentro do vento e ter a imunidade invejável dessas coisas que, quanto mais ambulantes, mais inalcançáveis
Dessas coisas que concluem um ciclo mais que perfeito, sem que saiam do mesmo sítio. Coisas tão simples e tão revestidas de significado, como um templo ou uma tenda. Em que tudo tem que ter um termo para que se assegura o próximo mote. Em que o amor é a única arma apta e pronta a abater o tédio e outras formas mundanas da morte.  

Tuesday, September 09, 2014

Vigésima Sexta Epístola

Mesa de matraquilhos na noite de Cracóvia, Vitor Vicente, Julho de 2014


Estive quase para te tratar por B2 ou por B&B. Também te poderia ter tratado por C, pois estás no mesmo edifício que o meu escritório e costumo passar pelo teu espaço para abastecer o estômago antes de entrar ao trabalho.
Para ser sincero, não te assemelhas a nada disso. Pareces-te antes a um velho prostíbulo, mal e porcamente restaurado. Em quê?, perguntas-me. Em tudo, respondo. E enumero.
Começo pelo pessoal que te frequenta. Afinal os fregueses é que fazem os lugares. A fauna é francamente elitista.  Muito managers das empresas e sobressaem os expatriados. (A Polónia, tal como Portugal, é um país pobre em vários aspetos, logo estupidamente elitista). Mas o que predomina são os casais que se destacam por as respetivas senhoras transportarem os pratos à mesa, onde o marido as espera. Ou os casos em que o homem, normalmente mais velho, se senta à mesma mesa que uma miúda mais nova que só o escuta e a todo o assunto assente com a cabeça.
A música, para ajudar à acústica de prostituta, tende a ser atmosférica, senão suavemente atravessada por uma voz feminina que só sussurra como quem suplica ou pede socorro. Já as paredes e os ocasionais quadros e os sofás roxos, juntamente com os jarros, só ajudam a crer que, a qualquer momento, pode crescer um varão do chão e alguém anunciar que a próxima se chama Tatyana. 
Toda a tua realidade é a do revivalismo. Talvez sejas um dos últimos e derradeiros redutos com réstia Soviética em terras da Silésia. Consegues surpreender tudo e todos, até quem já via a coisa preta por pretas não aparecerem por estas bandas. 
Depois da magia negra, bem que podias passar ao milagre dos matraquilhos. 

Friday, September 05, 2014

Vigésima Quinta Epístola

O rio de aldeia que corre pela cidade de Katowice, Vitor Vicente, Agosto de 2014


Dear B.,

Não foi só há três fins de semana que estive de volta a ti. Eu volto a ti várias vezes. Bastantes mais do que imaginas.
Volto a ti nesse inesperado templo que eu encontro em todos os ginásios que frequento.
Entre os exercícios, existem aqueles que são mais apropriados do que outros às viagens através do pensamento. Eu destacaria aqueles momentos passados em máquinas que nos movem sem que nos deixem sair do mesmo sítio. As passadeiras ou as bicicletas, duas máquinas que são verdadeiros e moderníssimos veículos de viagem, que nem aviões.
No caso presente, as passadeiras estão de frente para os televisores (e como eu fico contente em, através do polaco, redescobrir o bom Português que perdi em prol de Inglês da Irlanda e do vai e vem das viagens.)
Voltando ao dito aparelho. Nele desfilam - como numa passerelle - imagens de partes da Polónia e a respetiva previsão meteorológica. Partes tão distintas como a praça central de Cracóvia, as montanhas de Zakopane ou a estância báltico-balnear de Gdansk.
Tal como, há alguns anos atrás, eu me entretinha a correr sem sair do mesmo sítio e a ver semelhante desfile do império catalão. Na época, paisagens tão díspares como o Mosteiro de Montserrat, as praias da Costa Brava ou o centro de Perpignan.
É só isso. O suficiente para me sentir, simultaneamente, alicerçado a ti, Barcelona, e de te içado. Assim como abençoado por tudo aí ter (re)começado, como numa ressurreição, com destino a cidades debaixo de céus nunca antes atravessados.