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Wednesday, August 06, 2014

Décima Oitava Epístola

Caminho de ferro no campo de concentração - Auschwitz, Vitor Vicente, Agosto de 2014

Dear G-d,

Auschwitz é difícil em todos os sentidos. Até de o dizer - de o dizer em toda a sua injustiça. De sintetizar o sem-número de sensações que nos toma de assalto. Que nos atravessa e nos trespassa. Que nos tortura.
Mas eu tomei a abençoada liberdade de o resumir em cinco momentos que considero serem os meus momentos-chave.
O primeiro foi o espanto. De estar diante, de estar a ver olho nu toda essa medonha realidade que, antes, só existia no écran. Não com aquele espanto misturado de encanto com que se revisita o Times Square ou qualquer outro folclore dos filmes de New York. Aqui trata-se de um espanto que se desfaz em espuma de raiva, de revolta. Um espanto incrédulo. Em como isto existiu, como isto evoluiu a tais extremidades. Como isto pode ter sido pensado e mantido.
Depois, os meus passos que, enquanto caminhava em Birkenau e quanto mais sozinho me encontrava, mais se multiplicavam. Soavam-me como os passos do meu recente passado. Que me diziam que os prisioneiros dos campos de concentração são prisioneiros para sempre - que serão permanentemente prisioneiros. Que me diziam que aqueles que aqui perderam a vida são como nós: espécie de presas do ódio cego dos predadores que hoje, como naqueles tempos, encontram-se bastante perto.
Nas celas - que me desculpem, caso vos pareça mal - tive vontade de me deitar, lado a lado com os espectros dos prisioneiros. Numa espécie de solidariedade. Como se as minhas costas fossem à medida daquelas camas de merda, duras, e também tivesse eu que esperar a minha vez pela câmara de gás - enquanto via a minha vida irremediavelmente a andar para trás. Nunca me senti tão comigo e com os meus, senão nos momentos em que estive, a sós, nas celas dos campos de concentração.
Quando entrei num dos crematórios, de pouco ou de nada valeu o fato de saber que ia ver os fornos. Por mais que estivesse devidamente assinalado, e até sob a forma de alerta para os mais sensíveis, eu não consegui conter um grito. Porque consegui ver os corpos a serem cremados e a crueldade com que os animais arianos tratavam esses corpos. Consegui ver quão superficial é a linha entre um animal saído da selva e um ser civilizado.
Sair, saí eu de Birkenau com um sorriso enorme, que surpreendeu e ofendeu os que acabavam de chegar.  Não culpo ninguém. Nem eles, que não entendiam que eu olhava para a porta de saída do campo de concentração - e sentia que estava a sair de lá, depois de muito, mas muito tempo; nem eu, que também não sabia que porque sentia isso, porque saí assim tão sorridente, tão sinceramente sorridente. 

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