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Wednesday, July 09, 2014

Sexta Epístola

Vida sobre rodas em Cracóvia, Vitor Vicente, Junho de 2014

Dear D.,

Desta vez, D., é a ti que me dirijo, a quem quase me atrevo a dirigir com as duas iniciais de que é composto o teu imortal nome. (E pela tentação que sinto tremer a ponta da minha caneta se atesta o quão próximo tu, só tu, consegues estar de D-us). 
Mas vamos por partes. A primeira razão porque me dirijo a ti está relacionada com o livro que acabei de ler. Trata-se de mais uma variante do teu mito. (E pelas mil e uma variações do teu mito, se atesta também quão bem trabalhaste a tua trincheira contra a morte).
O autor deste livro é António Patrício. Nome que ignorado pelos ilustres das letras Portuguesas e que me foi recomendado por aquela que, entre todas as minhas outras, mais e melhor me conhece. Sob a pena de António Patrício, és descrito como um libertino sofrido, um tanto ou quanto arrepiado e até diria que arrependido. 
Não me assombraste. Um devasso é, por condição, lúcido. Demasiado lucidez para que não deixe de estar, associado a essa inalienável lucidez, o sentir sempre uma certa espécime por viver entre esta senil espécie humana.
A segunda razão - e ainda sem sair do capítulo do sofrimento - é o meu absurdo desejo em ser feio. Pelo fato de que tudo seria mais fácil, legível de uma ponta à outra dos lábios, quando toca a interpretar quem de mim gosta por simplesmente ser quem sou e/ou fazer o que faço. Deixaria de dar nas vistas, de ser bajulado durante um tempo, até perceberam que não levariam pouco mais do que nada, aqui do meu lado. 
Por outro lado, acabariam as responsabilidades sociais que acarretam o bom aspeto. Ponto final na pressão com as pessoas pelo meu porte, no dever diário em manter uma conduta cívica à altura do aprumo.
Só tu vais acreditar. Ainda há dias, fui ver um apartamento para alugar e, no final da visita, a senhoria que eu cá ficasse para um café e o que chamou um teste ao colchão. Claro que não fiquei. Contudo, a dita, inconformada, continuou a telefonar-me alguns dias depois deste episódio.
Estou cansado. Pode parecer fácil, mas os nossos dias dividem-se entre matar o desejo ou arrastar-se por um deserto. É certo que os nossos dias têm mais abate de desejo do que o calendário do comum dos mortais. Contudo, cada dia no deserto é, por isso, ainda mais árido e desprovido de aragem ou alento. Deve ser por isso que nos difamam quando nos dizem que vamos por aí, como vai o vento. 

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