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Tuesday, July 29, 2014

Décima Sexta Epístola

Nikiszowiec - Arredores de Katowice, Vitor Vicente, Julho de 2014


Dear K. 

Durante muito tempo, necessitei de silêncio para ler e, sobretudo, para escrever. Depois, sem que tenha dado conta da mutação, o silêncio metamorfoseou-se numa certa banda-sonora, tendencialmente a cair para o Jazz e sempre instrumental. 
Mas em Katowice a acústica é outra. Alterno entre o vai e vem da auto-estrada que chega ao alto deste décimo andar e o televisor ( e voltar a dizer televisor em vez de TV, tem para mim uma ternura do tamanho do mundo). 
Acima de tudo, o que te quero dizer, K, é que adoro a tua orquestra. Como ela toca as sinfonias do silêncio Silesiano, entrecortado pelo chegar e partir de um ou outro "tram", de um ou outro programa de televisão, também ele entrecortado por um ou outro "reklama" (e o fato de a palavra "reklama" ecoar a palavra "reclame",  palavra que eu entretanto esquecera, também tem para mim tanta ternura). 
Tudo o resto é ruído humano, demasiado humano para que nem precise ser expulsado pela orelha por onde não entrou. É que, chegado a este estágio, já quase nada me entra por orelha nenhuma. Cheguei à chamada surdez seletiva e sou snob até à ponta das orelhas com que pouco mais mais ouço do que o silêncio Silesiano e a acústica de Katowice. 

Friday, July 25, 2014

Décima Quinta Epístola

Spodek - Katowice, Vitor Vicente, Junho de 2014

Dear K. 

Vivo no teu seio há um mês, mas é como se tivesse vivido aqui toda a minha vida. Essa sensação é derivada do meu vasto conhecimento do mundo. Não, K, não tens com que te preocupar contigo. Não és mais, nem menos misteriosa do que as demais cidades. Sou só eu que, depois de ter passado pelas cidades dos cinquenta países que conheci, rapidamente capto o vai-vem, as várias vibrações que movem um perímetro de terra a que se logrou dar um nome próprio.
É certo que ainda me perco a traçar caminhos dentro de ti. Tão certo como que me irei continuar a perder. Não entendo patavina do teu idioma, apenas uma palavra ou outra. O suficiente para saber que, por mais que aprenda o teu linguarajar, se assim o quiser, sempre estarei nalgum lugar, longe, onde tudo possa reduzir a ruído humano.
Quero ainda acrescentar que me sinto estrangeiro e contente com esse estatuto. Que, pela primeira vez, existem os da casa e poucos patos bravos como eu. Que, por mais que me custe ter que andar uma hora de autocarro até Cracóvia e de lá nunca me apeteça voltar, quando regresso, sei que é no teu seio que me quero aninhar. 
Tens o condão de me fazer sentir em casa, sem o sufoco que sente quem em casa está condenado a permanecer para sempre. Que o teu calor e até a tua comida imprópria para o calor, que os teus parques perigosos, assim como as tuas perigosas estradas, tudo isto, misturado, afinal me transporta até aquela casa de férias de que a criança que fui sempre careceu.
E tudo isto é compatível com o fato feérico de haver quem aqui viva como se aqui se pudesse viver a vida de todos os dias. Já não me espanto como me espantei com quem burguesmente morava em Barcelona. Conheço demasiado mundo para captar quase todas as cidades em cinco dias. Leio o singular através do arquétipo. O que foi também o fruto das horas que passei a estudar Filosofia. Bebo dessa fonte, sem que pouca gente perceba porquê. Lá está, quedam-se pelo particular, pelo comezinho e ainda se acham os maiores por limparem o cu a papel higiénico devidamente reciclado. 

Wednesday, July 23, 2014

Décima Quarta Epístola

As tentações de Katowice, Vitor Vicente, Julho de 2014

A ti, D., me dirijo, na derradeira noite neste décimo andar. Noite em que, esperava, estar a escrever algo mais elevado, muito mais elevado do que isto. Algo do tipo: "do alto deste décimo andar me despeço" e assim se parecesse à epístola de um suicida, pois todas as despedidas têm o seu quê de luto.
De luto ficamos nós quando não matamos o desejo. Mais ainda quando ficámos a um pequeno passo. 
Ainda no táxi, eu vi quatro long legs, de calções, a aproximarem-se do que, nessa noite, ainda seria o meu prédio. Na hora, pensei se, por uma noite, ainda poderíamos partilhar o mesmo prédio, que é como quem diz o meu quarto.
Saí do táxi e senti as quatro long legs, mal grado a ausência de troc-troc, atrás de mim. Cheguei à porta alguns segundos antes delas, a tempo de a abrir: primeiro para elas, depois para mim. Sorriram.
Sorriram, de novo, quando as vi à entrada do elevador. Não me engasguei a perguntar se viviam aqui e a acrescentar que, assim sendo, seríamos vizinhos até amanhã. Perguntaram-me onde iria viver, confirmei onde era o meu novo bairro, congratularam-se com o fato de ser perto. Uma delas, que parecia mais embriagada em todos os sentidos, ainda me disse que queria ir a essa festa. Mas eu só disse que, por enquanto, estava no décimo andar. Até amanhã de manhã. Mas não frisei que é a festa era aqui e agora. Não as convidei a tomar cervejas que, por acaso, até tinha no frigorífico. E assim foi-se a festa.
E estas, dear D. ficam-me atravessadas. Não até amanhã de manhã, senão para sempre, pelo menos em todas as manhãs em que acorde sozinho perante a imensidão do mundo. Especialmente nessa derradeira noite no décimo andar em que, em vez de estar a escrever algo lírico, acabei por escrever algo que lastimo. À falta de ejaculação, valeu-me a escrita enquanto exercício de exorcismo. 

Décima Terceira Epístola

Pistacchio - Gelataria no Bairro Judeu de Cracóvia, Vitor Vicente, Julho de 2014

Dear K.

Mal sabes tu o gozo que eu tenho em saber que o meu sémen circula, junto com o teu sangue semita, através das tuas veias.
Talvez, desconfies. Eu até me descosi, várias vezes, entre as várias canecas de cerveja que gentilmente trouxeste à mesa. Também maneiras te desvelei que, de vez em quando, me dá para escrever.
Não, não me contive. Todo o conjunto da tua cara, aliado às tuas long legs, foram demais para poder ter ficado calado e/ou quieto. Dirão alguns que demorei a dar-te o primeiro beijo. Como sempre, contraponho com a minha timidez. Em que ninguém crê, a começar por mim. 
Sou sarcástico, eu sei. Mas o assunto é serio, esse o de o meu sémen circular, junto com o teu sangue semita, através das tuas veias. Assunto transcendental, união milenar que encontrou em dois corpos o lugar de reencontro e na sede do sexo a saída para uma certa sensação de alívio, de quem sacode o sufoco.
Como se tivéssemos num cerco, numa espécie de gueto. Pressionados sempre por pessoas que não percebem como podemos nós nascer e morrer com a mesma imperdoável idade.
Eu não aspiro à absolvição. Basta-me a benção de saber que a esta hora, estendia na tua cama como estendida ocupaste todo o meu sofá, o meu sémen circula, junto com o teu sangue semita, através das tuas veias. 

Sunday, July 20, 2014

Décima Segunda Epístola

Álcool 24/7 no Bairro Judeu de Cracóvia, Vitor Vicente, Julho de 2014

Dear J.,

Já não estás aqui, mas é como se por aqui perto continuasses. Mais do que me teres trazido a vida que tenho dentro das malas, trouxeste-me uma humana aragem, justamente quando eu me encontrava moribundo para o mundo. 
Tu não sabes, muita pouca gente o sabe. Eu próprio sou uma dessas pessoas. Um dos tantos que ignora que eu tenho sido o meu pior inimigo. 
Nem sempre tenho levado a minha solidão da maneira mais saudável. Deixo que o tédio me destrua os dias, me deprima. Me leve a desistir e a, desinspirado, não ter outro intento senão auto-destruir-me.
E não, não é só com o sabido álcool que me auto-destruo. O álcool, quando o tomo à luz do dia, deita-me abaixo. Como se a luz do dia me encadeasse o cérebro e tudo escuresse e entristecesse. 
Preciso mais de ti do que tu pensas. Inclusive, das tuas queixas, das tuas neuras por razão nenhuma e das tuas paranóias que tão bem combinam com essa narigueta.
Basicamente, preciso da tua proximidade humana. Para equilibrar esta extensa solidão acumulada.  

Décima Primeira Epístola

Um dos cento e tais quiosques em Cracóvia, Vitor Vicente, Julho de 2014

Dear T.

Assim que cheguei ao apartamento que aluguei em Cracóvia, poucos minutos depois, dei conta de que deixei a caneta em casa - que é como quem diz em Katowice, o que soa estranho, quase tão estranho como andar de autocarro durante uma hora para vir aqui dormir duas noites.
Adiante, que se faz tarde. No entanto, fez-se fácil a empresa de encontrar uma caneta por estas bandas.Ao fim de dez minutos, comprei uma caneta num quiosque. No fundo, é para isso que existem quiosques: porque ainda existem pessoas que escrevem com canetas. E vice-versa. Pessoas que ainda escrevem no papel, que ainda escrevem postais e, quando se põem a escrever emails, escrevem-nos longos, pela simples razão de se esquecerem de que estão a escrever eletronicamente.
Quiosques como estes, com canetas, jornais e bugigangas, só continuam a existir em cidades charmosas como Cracóvia, ou dadas à inteletualidade, como Buenos Aires (By the way, a Argentina está a jogar agora e o pessoal no bar está a assistir).
Mas não me interessa. Tudo o que te quero dizer, T. é que não te tenho mais como tirana. Antes como orientadora, enquanto diretriz. Matrizes, pró-isto ou anti-aquilo, todos temos. 
Ao menos nós, tradicionalistas, sabemos ao que vamos e o que vemos. E de mais nada precisamos, para não nos sentirmos vedados, mas sim desvelados. 

Tuesday, July 15, 2014

Décima Epístola

A Cidade Velha de Cracóvia, Vitor Vicente, Julho de 2014

Dear R.,

Qual Cluj Napoca, qual quê? Cracóvia é que é. 
Isto é do caralho. Tenho a testostorona aos saltos. Nunca vi tantas gajas giras por m2. A Polónia tem o perímetro do paraíso.
Sem exagero. Só há uma justificação para não se ter visto uma gaja gira: é ter estado distraído a olhar para outra.
São ao pontapé. Dão-nos pontapés. Com o troc-troc, até nos conseguem chocalhar os colhões.
Perdoa-me, meu amigo, por te escrever neste termos. É uma consequência da fauna de uma cidade como Cracóvia. O sexo sobe-nos, soberano,à cabeça. Os sentidos têm a supremacia em todos os...sentidos.
Claro que Cracóvia é uma cidade charmosa, de edifícios estupendos e ruas cheias de história. Isso e muito mais. Incluindo, as (muitas) mulheres.
Tu tens que cá vir e deixar a tua nova vida nessa casa que não é tua. Não tragas talheres, nem toalhas. 
Vais ver que Cracóvia é do caralho. E vê-las por um canudo também.

Nona Epístola

Concerto de encerramento do Festival de Cultura Judaica em Cracóvia, 
Vitor Vicente, Julho de 2014

Dear G.,

Está um gajo com um kipah enorme à minha frente. Quase que nem consigo ver o palco. A kipah até que nem é tão grande. Da kipah cresce é um par de cornos. 
Não, não foi preciso ter visto este tipo para te poder ter visto no Festival de Cultura Judaica em Cracóvia. Estas coisas são a tua casa. Música, teatro, cerveja, comida, cultura, convívio. Mais do que ser o teu genético povo ou a tua casa, é como diz o teu outro povo: é a tua cara.
Se já aqui vieste, tenho a certeza que gostarias de cá voltar. A menos que, tal como noutras coisas, o prazer se sintetize na frase: toca e foge. 
Todo este contexto faz com que te tenha na cabeça, até à ponta da kipah que não trago e que, como muitas outras coisas, ainda estão em malas que ainda não me chegaram às mãos. Quando digo, o contexto, digo este festival e o mundial de futebol. 
Tu chegaste primeiro à cidade, pois cabe chegar primeiro quem de mais longe vem. Ficaste a fazer compras, que é como quem disse a fazer tempo. Ou será ao contrário? Digamos que fizeste compras na cidade para (chamemos) Inglês ver.
Encontrámo-nos num pub a poucos passos do hotel. Do dito não saímos durante dia e meio. De dentro de ti não saí, senão para voltar a entrar por outra via. 
Dessa cidade, não vi quase nada. Tal como agora, por causa de um par de cornos, não vejo nada. Mudam-se os palcos - mudam-se pouco mais do que os palcos.  

Friday, July 11, 2014

Oitava Epístola

Entrada do Jewish Community Centre de Cracóvia, Vitor Vicente, Junho de 2014

Dear G-d,

Estou na Polónia, minha casa de férias, mais concretamente em Cracóvia, Tua terra e casa também, por todas as terras e o tamanho do mundo perfazerem o perímetro de Tua casa. 
Apesar de estar na minha casa de férias, de vez em quando, dá-me para consultar as notícias, ver como vai a vida. É num desses momentos que fico a saber que, como vingança pelo sequestro e assassinato de três adolescentes Israelitas, mataram um moço muçulmano.
Não me cabe dizer que é condenável. Só reforçar o quão é claramente condenável. Ninguém tem o direito de tirar a vida a ninguém, a não ser por legítima auto-defesa. Sobre este assunto, penso, é fácil chegar a um acordo. 
Tanto assim que Israel, nação tão dada à discórdia interna, condenou e quase em uníssono este crime. Sim, chamou a coisa pelo nome: crime. E, como tal, quem o cometeu, terá que ser castigado.
Normal, até aqui tudo normal. Excetuando que os autores de ambos os assassinatos apenas estão a ser perseguidos pelas autoridades...Israelitas. Palestinianas, como se costuma dizer, tá quieto. Algumas das ditas até glorificaram o ato. Até o "tweetaram" como, á falta de presença no Mundial, uma espécie de Hat-Trick da Palestina. 
Detestável, tremendamente detestável. Por aqui se pode ver quem pretende e luta pela paz e quem não o faz. De um lado, um estado de pleno direito, democrata e tal e que não aceita crimes cometidos contra os seus cidadãos, nem por parte destes. Do outro, um estado que quer ser permanentemente uma espécie de país em potência, para poder fazer pirraça ao pessoal vizinho e não os deixar viver a sua própria vida.
P.S. Ainda se suspeitou que o moço muçulmano era homossexual e que tenha sido morto por isso. A ser assim, às mãos do Hamas. Mas não, foram mesmo os Israelitas. Não tarda está nas manchetes dos jornais e a passar no rodapé dos telejornais.

Sétima Epístola

Linha do Tram no Centro de Cracóvia, Vitor Vicente, Julho de 2014

Dear T.,

Volto a sentir-me em casa, tal como em Praga. Não só em Kazmierz, senão por toda a cidade.
Da janela deste quarto de Cracóvia, tal como no respetivo em Praga, vejo-te passar. Exato, a ti, a quem teimo em tratar-te por T. Por insistir em chamar-te de Transilesiano, espécie de primo do Transiberiano, por quem tenho maior empatia do que pelo elétrico 28 de Lisboa.
(Um pequeno parênteses para constatar o espanto dos estrangeiros que conheço e que tentam, sem sucesso, "pegar comigo" com referências a portuguesas coisas. Não é culpa dos ditos, mas eu deixei a Pátria cedo, com vinte e três anos, e emociono-me mais quando me contam episódios de Barcelona ou de Dublin). 
Voltando a ti, T. Que continuo a ver passar de um lado para o outro. Que aposto seres o mesmo que eu vi que passar da janela do quarto de Praga. (Não vou abrir parênteses para Praga, por caber a esta epístola estar no encalço do "tram"). 
Todos os "trams" são um e o mesmo. Todos ligam - e convidam-me às - cidades que eu não conheço e onde me iria sentir em casa. Porque todos os "trams" do Leste proporcionam viagens no tempo e no espaço. Todos são parte do palco ambulante dos poetas saudosistas que, tal como os respetivos futuristas, ficam frenéticos com as máquinas - no caso, com calhambeques e ferrugem velha afim.
(Por falar em saudade, abra-se um pequeno parênteses para a sede. Sim, eu tinha saudades de ter sede, do desespero por uma bebida fresca, em hidratar-me e sentir-me um humano outra vez. Em Dublin podem-se contar pelos dedos de uma mão os dias em que se sente sede, em que uma pessoa se sente seca. Essa sensação apenas fez parte dos dias em que se viaja, é pertença (a posteriori, lembrança) das férias.)
Viajar, viajo agora sempre que, daqui do quarto, te ouço passar. Viajo sem que do quarto, sequer, tenha que sair. 

Wednesday, July 09, 2014

Sexta Epístola

Vida sobre rodas em Cracóvia, Vitor Vicente, Junho de 2014

Dear D.,

Desta vez, D., é a ti que me dirijo, a quem quase me atrevo a dirigir com as duas iniciais de que é composto o teu imortal nome. (E pela tentação que sinto tremer a ponta da minha caneta se atesta o quão próximo tu, só tu, consegues estar de D-us). 
Mas vamos por partes. A primeira razão porque me dirijo a ti está relacionada com o livro que acabei de ler. Trata-se de mais uma variante do teu mito. (E pelas mil e uma variações do teu mito, se atesta também quão bem trabalhaste a tua trincheira contra a morte).
O autor deste livro é António Patrício. Nome que ignorado pelos ilustres das letras Portuguesas e que me foi recomendado por aquela que, entre todas as minhas outras, mais e melhor me conhece. Sob a pena de António Patrício, és descrito como um libertino sofrido, um tanto ou quanto arrepiado e até diria que arrependido. 
Não me assombraste. Um devasso é, por condição, lúcido. Demasiado lucidez para que não deixe de estar, associado a essa inalienável lucidez, o sentir sempre uma certa espécime por viver entre esta senil espécie humana.
A segunda razão - e ainda sem sair do capítulo do sofrimento - é o meu absurdo desejo em ser feio. Pelo fato de que tudo seria mais fácil, legível de uma ponta à outra dos lábios, quando toca a interpretar quem de mim gosta por simplesmente ser quem sou e/ou fazer o que faço. Deixaria de dar nas vistas, de ser bajulado durante um tempo, até perceberam que não levariam pouco mais do que nada, aqui do meu lado. 
Por outro lado, acabariam as responsabilidades sociais que acarretam o bom aspeto. Ponto final na pressão com as pessoas pelo meu porte, no dever diário em manter uma conduta cívica à altura do aprumo.
Só tu vais acreditar. Ainda há dias, fui ver um apartamento para alugar e, no final da visita, a senhoria que eu cá ficasse para um café e o que chamou um teste ao colchão. Claro que não fiquei. Contudo, a dita, inconformada, continuou a telefonar-me alguns dias depois deste episódio.
Estou cansado. Pode parecer fácil, mas os nossos dias dividem-se entre matar o desejo ou arrastar-se por um deserto. É certo que os nossos dias têm mais abate de desejo do que o calendário do comum dos mortais. Contudo, cada dia no deserto é, por isso, ainda mais árido e desprovido de aragem ou alento. Deve ser por isso que nos difamam quando nos dizem que vamos por aí, como vai o vento. 

Quinta Epístola

Interior do Restaurante Judaico Ariel - Cracóvia, Vitor Vicente, Julho de 2014

Dear E.,

Não te vou pedir explicações, nem perguntar-te o porquê de, entre nós, ter dado no que deu e não ter dado no que não deu. Tal como te mandei numa das últimas mensagens, eu sei disso, sei de tudo isso, pelo simples motivo de que o meu sobrenome não ser O' Brien.
Só queda uma coisa que não consegui compreender: como é que, tendes tu uma casa em Cracóvia, não vens cá mais vezes? (Atenção. Esta carência de compreensão nada tem que ver com o supracitado complexo de O'Brien, antes sim com o fato de ter um "crash" por Cracóvia).
Porque quando se tem um "crash", não há como conter o declínio da compreensão. Queremos crer que o mundo é perfeito, apenas e só por descobrirmos que afinal, algures no mundo, existe essa pequena parcela por quem temos o tal "crash".
Lição sobre o tamanho do mundo. Lembra-te que o mundo é maior do que o Reino Unido e a República da Irlanda. O fato de falares fluentemente Francês e de teres vivido fora (ainda que em New York) devia-te evidenciar isso. O mesmo podia acrescentar para a tua costela Judaica, por mais que a teimes em calar, contra chamadas espirituais e constantes contatos com carnes circuncisadas. O dinheiro nunca te servirá de desculpa. Pelo menos, enquanto o "American Express" ("American", que vergonha) do teu pai continuar à mão de semear e a espreitar na algibeira. Só não o escondes de todos os teus amigos, por todos eles também viverem às custas de um certo cartão de crédito. Assim estás a salvo de possíveis pragas esquerdalhas. Quanto à tua cara, absolutamente Askhenazi, só um véu poderia ocultar a verdade. Graças a D-us não és esquerdalha o bastante, leia-se femininista, para cobrir nem o corpo, nem a cara).
Gostas até - e bastante - que te espanquem. Essa panca pelo "spanking" é património das direitinhas. Eu curto as tuas contradições. Esquerda caviar e sangue real, obsessão com o misticismo e com cem números distintos de se dedicar ao sexo. Vai tudo tão bem com Cracóvia. Tens que cá vir dar uma volta. Levar uma sova. 

Quarta Epístola

Não muito longe dali - Katowice, Vitor Vicente, Julho de 2014

Dear K.,

Volto a dirigir-me a ti daqui, do alto deste décimo andar. Por cá estarei por mais duas semanas, até que acabe o período de alojamento a cargo da empresa.
Não penses que não comecei a tomar as devidas providências. Deixei de ser esse rapaz das Ramblas, que mudava mais de casa do que camisa e pedia pão para a boca com a lata de quem pede boleia. (Agora que me lembro da história central da presente epístola, lembro-me que em Barcelona fui personagem de idêntico episódio).
Antes de o desvendar, quero adiantar que não penso viver debaixo da ponte. Primeiro por - até onde eu sei esta cidade - não existirem por cá pontes ou coisas parecidas. Segundo por - como tenho dito a alguns amigos - preferir vir a morar num bom bairro de Katowice do que debaixo de uma das pontes do Wisla, por muito que pudesse considerar isso como morar em Cracóvia.
Públicas são então as minhas intenções. Duas bgiginas têm-me ajudado na procura do poiso. Uma delas viu um anúncio de um apartamento para alugar e a outra acompanhou-me na visita para efeitos (entre outros, como vamos ver adiante) de tradução - que é um efeito bem caro a emigrantes em terras do Leste. Outro é o próprio ato de marcar a visita. Ainda ao telefone, a senhoria, assim que soube que o possível inquilino não falava uma palavra (força de expressão, pois sei umas quantas) de Polaco, perguntou várias vezes: "É negro? Mas é ou não negro? Português, mas negro?".
Ainda que a coisa parecesse estar preta para os meus lados - literalmente, pois estou mais tisnado desde que estou na Polónia , devidamente escoltado pela bgigina, lá fui ver o apartamento. Mais do que ver o dito, foi ver a velha. Tal como antevíamos, o apartamento em si era bestial, meio artístico, meio clássico. Tal como a velha, com a diferença de que nela se via o declive que tinha sido sua vida, que havia descambado em vícios como o vodka e os anti-depressivos. O apartamento em si, sim. Só que o apartamento com a senhoria não, nem pensar.
Quanto aqui ao negro, afinal era semi-negro. O suficiente para, aliado ao fato de não ter namorada, me cravar o número do telemóvel e, quando estávamos quase a sair de casa, me convidar a ficar a fim de experimentarmos (plural) o conforto da cama. E assim, dado o clic no clit, se desfaz o racismo em cacos. Ou será que a senhoria tinha tara por negros e/ou escurinhos?
Não sei, nem quero saber. Estava perplexo. Primeiro, por ter perdido uma casa tão boa. Segundo, por me parecer que esta senhora (a quem já não chamo de senhoria, por a ver mais como uma pessoa do que outra cosia qualquer) tenha sido, alguns bons anos atrás, uma mulher bonita e até interessante e estar agora afogada no vodka. Como a respetiva de Barcelona, a típica artista, rica e despistada, com quem dividi casa durante um mês. O mesmo triste declive. Só mudava isto: em vez de vodka, vinho. 

Wednesday, July 02, 2014

Terceira Epístola

Pic-nic à beiro do Rio Wisla em Cracóvia, Vitor Vicente, Junho de 2014

Dear R.,

Desde que me mudei para Katowice,muitos foram os momentos que, ainda enquanto os vivia, já me diziam que iriam permanecer comigo para sempre. São, esses,os momentos que interessam. Os que subsistem. O mesmo vale para os diálogos com grandes amigos como tu. De quem sempre recordarei certas sábias palavras. Por exemplo, quando me disseste que preferias Praga a Paris e que, para ti, não tinha sequer comparação. Também acrescentaste que mentiste aos franceses, que lhes disseste que Paris era a cidade mais bonita do teu lado e que os idiotas te brindaram com baguettes et allez les bleu
Voltando a Praga. Quem diz Praga, diz Cracóvia. E quando digo "diz", refiro-me a gente como nós, que não vemos o mundo pelos obtusos olhos dos outros. 
Havia muito que te contar sobre Cracóvia. Em como é uma cidade charmosa, mais continental do que propriamente de Leste, tão clássica quanto cool. Mas eu perdi-me a contar o número de gajas giras que se vêem por minuto. 
Mas eu não minto quando digo que em cada dez gajas, dezoito são giras. Quer isto dizer que, quando engatas uma, corres o sério risco de acabar num menage-a-trois - pois a maior parte delas valem por duas. Lembro-me de, em Setembro do ano passado, quando voltei de Varsóvia, me terem perguntado pelas gajas e ter respondido que oitenta por cento são giras, dez são razoáveis e o resto resolve-se com Vodka. Aqui em Cracóvia é ainda melhor Quanto a Katowice, é quase como em Cracóvia. Quase, claro. Também não se pode comparar - Cracóvia é a capital do charme continental e um hot spot das long legs da Europa de leste. Na Polónia, pelo que me foi dado a ver, o problema é que te queres casar de dois em dois minutos. Mas tão depressa aparece o problema, como a solução - dois minutos depois já te queres divorciar. 
Lembro-me também de um peruano - que deixou de trabalhar comigo pouco antes de tu teres entrado na empresa - que dizia que não são precisas mais gajas giras no mundo, mas sim um pouco mais de álcool. Essa equação não se aplica em terras polacas. É certo que o álcool é super barato, mas as mulheres custam os olhos da cara. É esta a tabuada do leste da Europa. Como em Cluj Napoca. Onde nos sorriam cada cinco minutos e nos convidaram a subir para uma assoalhada aparentemente cheia de mulherada - e nós, cagados, nós nada.
Fiquei com essa atravessada. Fosse só essa. Fosse eu fazer um gargarejo de gajas e não sei quando poderia começar uma nova carta. 

Segunda Epístola

Menorah na Velha Sinagoga de Cracóvia, Vitor Vicente, Junho de 2014

Dear G-d,

Só a ti, Senhor, não sou digno de te dirigir uma epístola com a inicial do teu nome. Nem isso, nem de escrever o teu nome inteiro. Porque só a ti pergunto pelos mais profundos porquês, pelo plano que tens para este planeta que é tua pertença e em que nele nos cabe habitar para te prestar homenagem.
Há muito que trago, pendente, esta pergunta comigo. Mas hoje - hoje, em que encontraram os corpos de três adolescentes israelitas - hoje não passa. Porque temos de continuar a ser perseguidos? Porque apenas nos é permitido existir escondidos? 
Eu até fui avisado para não ter nenhuma mezuza à porta de casa. Eu fui avisado para não usar a minha t-shirt com o símbolo das Forças de Defesa Israelitas - aliás, já só a uso como pijama e, sempre que tocam à porta, apresso-me a vesti-la às avessas. Eu fui avisado para não aceitar convites de amizade de colegas de trabalho em redes sociais, para que não saibam das minhas ligações a Israel ou ao Judaísmo.
Porquê esta missão de trazer a identidade virada do avesso? De andar camuflado dentro da civilização? Porquê esta pressão por ser quem sou?  Esta ansiedade em assegurar-me de que estou a salvo de possíveis represálias por parte de quem se acha o porta-voz da verdade e o representante da realidade? Acaso é este suor sôfrego algo sagrado? Porque Israel está reduzido a uma ideologia? E, se está, porque é uma ideologia interdita? Qual o porquê de ideologias interditas? Que eu saiba, sonhar não tem impostos, nem o pensamento está sujeito à proibição.
Se é isto que cumpre à luz do mundo, então cobrais-nos um elevado custo. A Terra Prometida está debaixo de ameaça. E o mesmo se passa com o dia-a-dia da Diáspora. 

Tuesday, July 01, 2014

Primeira Epístola

Centro Comercial Silesia City Centre - Cracóvia, Vitor Vicente, Junho de 2014

Dear K.

Debruçado na varanda deste décimo andar, enquanto escuto o silêncio da Silésia, concluo: mudei-me para cá para ajustar contas com o meu passado. Trata-se então de um ajuste de contas. Em que não há outro tribunal senão o tempo. Um processo um tanto ou quanto Kafkiano (por mais que me custe adjetivá-lo assim, pois hoje em dia toda a gente usa essa palavra, inclusive quem nunca leu uma linha de Kafka). Um julgamento de alta e etérea instância, presidido por Jerusalém. Como se, desde sempre, eu tivesse estado à espera de receber uma chamada para estar aqui. 
Aqui ou noutra cidade que chamasse a si os soviéticos e um outro czar. Em viagem, quando me encontrei em certos lugares, várias vezes fui assaltado pela seguinte sentença "Eu não era para estar aqui". 
Desta vez, não se trata de uma viagem. Por mais que, quando se decida existir enquanto expatriado, a vida seja uma contínua viagem. Por mais que paragens, pessoas e paisagens pareçam ser mais do mesmo, metamorfoses de um só percurso. Deparei com pessoas que ficam espantadas por eu ter assentado arraiais em teu seio - até porque aqui, acrescentam de mãos abertas e vazias, nem há dinheiro. Outras acham que, sendo eu, até é aceitável - ainda que, acrescentam estes, podia ser Budapeste ou Varsóvia, agora Katowice? Versão polaca do Barreiro? O que estes incrédulos ignoram é que eu cresci com a queda do Muro de Berlim e o folclore soviético ficou-me no sangue. Não é por acaso que, assim que tive um "career break", fiz o Transiberiano, de uma ponta da Mãe Rússia à outra. Não é por acaso que a alma judia me foi revelada no respetivo bairro de Praga. 
Dito isto, até parece que por aqui me sinto confortavelmente em casa. O fato de não entender o idioma em redor e me reduzir a realidade circundante a ruídos só me cimenta esta certeza: na Europa de Leste fica aquela casa de férias que nunca tive e de que sempre careceu a minha infância. É fato também que é uma casa de férias. Tão fato como existir enquanto expatriado ser sinónimo de tirar férias do triste e mesquinho mundo dos outros.