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Monday, October 13, 2014

Trigésima Epístola

Outono dourado - Katowice, Vitor Vicente, Setembro de 2014


Dear K.,

No começo, foram alguns cabelos agarrados à almofada. Depois, um casaco de couro. Já mais tarde, pedaços de pele no colchão. Pelo meio, ocasionalmente, colares. Por fim, uma caixa de fósforos.
Parece uma sequência sinistra, Que tanto tem de serial killer, como de detetive que anda no encalço do dito, a tentar interpretar os sinais.
No caso, há o sinal que tens no canto da boca. Para onde apontei com o dedo, antes do nosso primeiro beijo. Esse inesquecível sinal, como os inesquecíveis são os sinais que deixámos pela cidade e pelo meu insignificante micro-quotidiano. Para ser sincero, esta cidade está impregnada com os nossos sinais. Nela navego à deriva e a isso digo ser liberdade, que é como os seculares tendem a chamar a não existirem escolhas, nem sombra de dignidade. Eu cá chamo-lhe puzzle imperfeito, a que falta a peça fulcral.
Mas é bem feito. Ninguém me mandou levar tão a sério essa solene cerimónia de sangue que celebrávamos na hora da carne. Levei essa aliança sanguínea demasiado longe. Confundi o ato do amor com uma lição de anatomia.
Começou com cabelos e fez-se casaco de couro. Espalhou-se pelo colchão em pedaços de pele e em ocasionais colares. Até que culminou numa caixa de fósforos. Na realidade, assim me foste avisando que o teu corpo é tão quente por nele transportares um rastilho. Eu só não entendia que, algum dia, tivesse que estoirar como estoirou. 

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